Por: Fernão Lara Mesquita é jornalista
É sempre aquela encruzilhada chave do catolicismo: “Pequei por
pensamentos, palavras… e obras”. É nessa reticência que se instala a inversão
fatal. O pecado em pensamento conduz diretamente à tortura: “Pensou ou não
pensou?”. Como prová-lo? Já o pecado em palavras está aí para produzir “a
prova” do pecado em pensamento. Mas, e os atos? Ora, os atos perdoam-se com
meia dúzia de ave-marias. Não há que perder muito tempo com eles.
Todo mundo tem o direito de desejar o fechamento do Congresso, do
Supremo e do que mais quiser e de expressar esse desejo. Só é proibido agir
para isso com o uso de força, o que está totalmente fora do alcance do portador
de cartazes em manifestações ou de quem bate palmas para eles. O STF agir
contra essas pessoas, isso sim, está expressamente proibido por lei. Quando é o
STF que viola a lei tem-se, de saída, uma afronta institucionalizada contra o
estado de direito. Mas quando ele passa a agir sem provocação o estado de
direito é literalmente aniquilado. Quando passa por cima das condições dentro
das quais é lícito acionar contra alguém a arma mais forte do sistema nenhum
outro direito do cidadão permanece em pé.
Há 15 meses o sr. Dias Toffoli, monocraticamente, instalou o vale-tudo
ao censurar uma revista por expor seus podres. Subverteu, com isso, todas as
condições dentro das quais a arma do STF pode ser acionada. E fez
jurisprudência. Desde então cada ministro “ofendido” por um “pecador em
palavras” está autorizado a agir para “fazer justiça” com as próprias mãos
sucessivamente como polícia, como promotor e como juiz da própria causa. Não é
preciso lei nem figura do Código Penal que defina a ofensa. Nem denúncia pelo
Ministério Público, nem endereçamento ao tribunal definido pela lei, nem
sorteio de juiz, nem indiciamento, nem defesa para os acusados.
De que outra ditadura têm medo, então, os nossos alarmados defensores do
“estado democrático de direito”?
O divisor de águas é muito simples e claro: há democracia quando o povo
manda no governo e este só tem os poderes que o povo explicitamente lhe
conceder. Mas nas seções de mútuo endosso entre representantes das corporações
beneficiadas por ela que a imprensa enviesada exibe à exaustão não há verdade
nem democracia fora da Constituição de 1988.
Mentira!
O caráter democrático de uma Constituição não se define por quais
privilégios determinados grupos de poder inscrevem nela, e sim por quais meios
ela é pactuada com quem vai acatá-la. Sem o referendo formal e explícito dado
pelo povo, única fonte de legitimação do poder numa democracia, que nos Estados
Unidos levou 13 anos de debates para ser alcançado e no Brasil nunca chegou
sequer a ser proposto, uma Constituição não passa da “verdade revelada”, ou
seja, da mentira da vez a que sempre se recorreu para justificar sistemas de
opressão.
Agora anda em voga a questão das listas tríplices. “Sem lista tríplice
não ha independência, nem democracia, nem transparência”, dizem nossos
“democratas”. Certíssimo! Mas independência do que em relação a quem? Do Estado
em relação ao povo, única fonte de legitimação do poder que, nas democracias,
elege diretamente os seus promotores e demais encarregados de fiscalizar o governo,
assim como os conselhos gestores de suas escolas públicas.
Não é de um óbvio ululante que a cadeia de lealdades que as listas
tríplices macunaímicas estabelecem – primeiro, do servidor em detrimento do
servido com a corporação que seleciona os três nomes passíveis de serem
transformados em deuses e, depois, de todos com o suposto fiscalizado a quem
cabe a escolha final – são a própria descrição da tragédia do Brasil?
Não seria a cegueira da imprensa para essa obviedade decorrência do fato
de haver gente demais nas redações desfrutando, pessoalmente ou pela interseção
de “cônjuge, companheiro ou parente em linha reta ou colateral, por
consanguinidade ou afinidade, até o terceiro grau”, os privilégios do emprego
estatal, que por isso os contemplam com a mesma boa vontade com que os
ministros do STF contemplam os seus?
De que outro modo é possível explicar que com a ajuda de 600 reais
reduzida a 200 ou 300 e por apenas mais dois ou três meses por falta de
dinheiro e metade da população desempregada ou subempregada não ocorra a
nenhuma grande redação brasileira pôr em pauta os salários, a
indemissibilidade, as aposentadorias, as lagostas e os vinhos tetracampeões que
nem as pandemias derrubam? Ou as reportagens que expliquem como conseguem as
excelências que tantas loas cantam ao “estado de direito”, mesmo com o gordo
salário que consta dos seus holerites, manter suas dachas internacionais em
euros ou em dólares?
A única invocação da Constituição brasileira interessada no Brasil é a
que vier para reivindicar a reforma que ponha o País Oficial na dependência
estrita da sua constante reconfirmação pelo País Real. E essa reforma começa
por extirpar dela tudo o que não diga respeito a todos os brasileiros sem
nenhuma exceção. Vender privilégios medievais como democracia e uma
privilegiatura segura o bastante para exibir sua arrogância como “estado de
direito” não engana ninguém.
Para ler outras matérias acesse, www: professortacianomedrado.com
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