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A
presunção da "boa-fé" no comércio de ouro, apontada como determinante
para o avanço do garimpo ilegal, é de autoria de um deputado federal do PT e
foi sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff.
Hoje,
a exploração do metal precioso em terras indígenas é um dos maiores desafios
enfrentado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no início do terceiro
mandato, diante da crise dos yanomamis
O
deputado Odair Cunha (PT-MG) é autor da emenda que estabeleceu a presunção da
"boa-fé", via lei nº 12.844, de 2013. O texto original, no qual essa
emenda foi incluída, era uma medida provisória (MP) que tratava de seguro
agrícola, tema sem nenhuma relação com a extração mineral.
Isso
faz da emenda de Cunha um jabuti, no jargão parlamentar. A presidente chancelou
sem vetar.
A
alteração do deputado determinou que basta a palavra do vendedor do minério
para atestar que a origem do ouro é legal. O comprador presume que ele diz a
verdade, e não será punido se um dia for comprovado o contrário.
Na
prática, porém, a lei nº 12.844 limita a fiscalização, pelo Banco Central, de
instituições financeiras credenciadas a operar com ouro, as DTVMs
(Distribuidora de títulos e Valores Mobiliários). Também compromete a punição
criminal desses estabelecimentos, caso uma investigação comprove que o ouro
saiu de uma reserva ambiental, por exemplo.
Em
ambos casos, a DTVM sempre pode argumentar que não é obrigada a verificar se o
vendedor está mentindo.
Diferentes
organismos preocupados com o combate ao garimpo ilegal consideram essa
presunção de boa-fé o principal instrumento para "esquentar" o ouro
ilícito no Brasil. Para derrubá-lo, há iniciativas no Congresso e no STF
(Supremo Tribunal Federal).
Levantamento
feito pelo Instituto Escolhas aponta indícios de ilegalidade na venda de mais
de 200 toneladas de ouro extraído no país, de 2015 a 2020, amparada pelo
instrumento da boa-fé, como relata o economista Marcos Lisboa, no artigo
"Uma história de ouro e sangue", publicado na Folha.
O
texto mostra que as taxas de homicídio aumentaram cerca de 20% nas áreas
indígenas e de proteção ambiental na Amazônia com jazidas de ouro, desde 2013.
"Esse
brutal crescimento da violência decorreu da adição de alguns artigos em uma lei
que nada tinha a ver com o problema, mas que terminou por facilitar o garimpo
ilegal do ouro. O resultado foi um massacre", escreve Lisboa.
"Nas
regiões em que o garimpo é ilegal passaram a ocorrer muito mais homicídios por
ano, cerca de 8 a cada 100 mil habitantes, em comparação com as áreas onde ele
é permitido. Trata-se de um número expressivo", completa.
Autor
da emenda, Cunha diz que fiscalização falha, que se expandiu no governo Jair
Bolsonaro (2019-2022), desvirtuou o objetivo da proposta. Cunha afirma defender
um novo marco para o garimpo, capaz de garantir o monitoramento da extração de
ouro e coibir ilegalidades, danos ao ambiente e aos indígenas (leia trechos da
nota abaixo).
O
petista foi secretário de Estado no governo de Fernando Pimentel, em Minas
Gerais, e acaba de se reeleger para o sexto mandato como deputado federal pelo
estado. Ficou mais conhecido quando foi relator da CPMI (Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito ) que investigou suspeita de transações ilícitas entre
agentes públicos e privados e o empresário Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos
Cachoeira.
Não
chega a ser um nome associado ao garimpo, como outros parlamentares. No
entanto, foi escalado para o grupo de transição de Minas e Energia e se
empenhou na mudança na lei de garimpo. Fez mais de uma tentativa para
flexibilizar a legislação dessa atividade antes de conseguir emplacar a emenda
da boa-fé.
Foi
autor do projeto de lei nº 6.700/09, que propunha descriminalizar a exploração
de ouro sem autorização legal quando o metal fosse destinado ao mercado financeiro,
nas operações de instituições financeiras autorizadas pelo BC.
O
deputado argumentava que a atividade encontrava limitações burocráticas desde a
promulgação da lei nº 11.685/08, batizada de Estatuto do Garimpeiro. O novo
marco passou a exigir a apresentação da PLG (Permissão de Lavra Garimpeira)
tanto para extrair quanto para vender o ouro, mas a liberação do documento era
lenta e estava travando o setor.
Cunha
declarava, na época, não ser razoável que toda a cadeia do ouro ficasse, do dia
para a noite, à margem da lei. Com a exceção, afirmava, seria possível agilizar
a exploração e garantir que esse ouro fosse comercializado no Brasil, e não
contrabandeado.
O
projeto, no entanto, não andou.
O
bloco de artigos que estabeleceu a presunção da boa-fé exigiu persistência do
parlamentar. Segundo consta do documento de protocolo da emenda, seu conteúdo
já havia sido apresentado dentro de outra proposta, passou na Câmara, mas foi
eliminado no Senado.
No
fim, a emenda dedicada ao garimpo, encontrou abrigo na MP 619, apresentada
durante o governo Dilma. Passou a compor o bloco dos artigos 37 a 41 da lei nº
12.844.
O
artigo 39 diz, no parágrafo 3º: "É de responsabilidade do vendedor a
veracidade das informações por ele prestadas no ato da compra e venda do ouro".
E
segue no parágrafo 4º: "Presumem-se a legalidade do ouro adquirido e a
boa-fé da pessoa jurídica adquirente quando as informações mencionadas neste
artigo, prestadas pelo vendedor, estiverem devidamente arquivadas na sede da
instituição legalmente autorizada a realizar a compra de ouro".
MOBILIZAÇÃO
EM DIFERENTES FRENTES TENTA REVOGAR A MEDIDA
No
Congresso, a então deputada Joênia Wapichana (Rede-RR) apresentou em agosto do
ano passado o projeto de lei nº 2159/2022, recebendo apoio de outras
parlamentares. Além de acabar com a boa-fé, a proposta estabelece os princípios
para a criação da rastreabilidade do ouro. Joênia não se reelegeu, mas se
tornou, no Lula 3, a primeira mulher indígena a comandar a Funai (Fundação
Nacional dos Povos Indígenas).
Sua
proposta segue no parlamento, apensada ao PL 5.131/2019.
Partidos
recorreram ao STF. O PSB (Partido Socialista Brasileiro) e a Rede
Sustentabilidade ajuizaram, em novembro do ano passado, Ação Direta de
Inconstitucionalidade contra a comercialização de ouro de garimpo com base na
presunção da boa-fé. No início de fevereiro deste ano, o PV (Partido Verde) fez
o mesmo, requerendo ainda que as DTVMs sejam obrigadas a criar mecanismos que
garantam a origem do ouro.
Nesta
terça-feira (7), para obter mais informações, o ministro do STF Gilmar Mendes
intimou o BC e a ANM (Agência Nacional de Mineração) a prestarem depoimentos
sobre a situação do garimpo ilegal na Amazônia.
Diferentes
entidades também se organizaram para derrubar a medida.
Em
julho do ano passado, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, foi alertado
sobe os crescentes prejuízos da boa-fé por um grupo que incluiu representantes
do Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração), Instituto Ethos, Isa (Instituto
Socioambiental) e Instituto Escolhas, que já publicou vários levantamentos
sobre as consequências socioambientais e econômicas do garimpo ilegal.
As
suspeitas são que um grupo pequeno de apenas cinco DTVMs estaria envolvido na
legalização de ouro clandestino, e o fim da presunção da boa-fé abriria caminho
para se romper esse ciclo.
OUTRO
LADO: BOLSONARO DESMONTOU FISCALIZAÇÃO E MUDOU CONTEXTO DA 'BOA-FÉ', DIZ CUNHA
Procurado
pela reportagem para explicar as consequências de sua emenda, o deputado Odair
Cunha afirmou em nota que a sua proposta foi pensada em um contexto totalmente
diferente do atual. Em 2013, ele acreditava que o procedimento de presunção da
boa-fé seria um elemento a mais para identificar a origem do ouro, contribuindo
com a fiscalização dos órgãos públicos.
"Infelizmente,
ao longo do período, ocorreram falhas de fiscalização e a criminalidade no
setor foi disseminada por estimulo do ex-presidente Jair Bolsonaro, sobretudo
em áreas indígenas, com o deliberado desmonte dos órgãos de fiscalização",
afirmou ele na nota.
Cunha
diz ainda que, por ser mineiro, tem uma ligação natural com o garimpo, e que
por isso se empenhou em contribuir com a legislação do setor.
"A
atividade minerária está consignada no nome do meu estado de origem. Não se
pode confundir apoio a uma atividade legal, sócio e ambientalmente sustentável
com apoio a práticas criminosas", afirmou Cunha no texto. "Repito: o
que ocorreu no governo Bolsonaro foi o desmonte dos órgãos de fiscalização, o
que levou ao calamitoso quadro atual".
O
deputado diz ainda que, com base nessa nova realidade, entende que agora é
preciso ter um novo marco para o garimpo, capaz de manter a fiscalização
rigorosa, garantir o monitoramento da extração de ouro, junto com medidas que
coíbam ilegalidades, danos ao meio ambiente e ataques aos povo indígenas, entre
outras iniciativas.
"Dez
anos depois, levando em conta o sucateamento dos órgãos de fiscalização e o
avanço dos meios tecnológicos, é fundamental o aperfeiçoamento dos instrumentos
de controle a fim de garantir rastreabilidade do metal", diz a nota do parlamentar.
"Assim,
vamos estudar, no âmbito de nosso mandato e com a assessoria técnica da
liderança do partido na Câmara, iniciativas que atualizem o marco legal,
inclusive na comissão de reforma do código mineral."
Procurada, a assessoria de imprensa da ex-presidente Dilma Rousseff não respondeu até a publicação deste texto.
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