Sou
crítico, com a régua da constitucionalidade e da convencionalidade, velho e
manjado da Lei
da Ficha Limpa e do seu subproduto ideológico destronador de direitos
fundamentais: o fichalimpismo. Antes de sua promulgação em junho de 2010,
já em 2009, apontava as suas violências — em conferências, entrevistas, artigos
e livros — às garantias da presunção de inocência, ao devido processo legal, à
proporcionalidade, à irretroatividade gravosa, aos conceitos jurídicos mais
elementares do Direito Eleitoral e às concretizações ótimas dos direitos
políticos fundamentais de voto e de candidatura. Gilmar Mendes chegou a dizê-la
uma lei redigida por consumidores exagerados de etil...
Também,
sendo coerente com minhas críticas ao moralismo contra constituitione, fui
um crítico de primeira hora e sigo sendo até hoje, sem solução de continuidade,
da "lava jato", dos excessos de seus exagerados protagonistas, e do
rebento nocivo, que abalou, fundamente, os alicerces liberais e democráticos do
Direito Penal em Terra de Santa Cruz: o lavajatismo.
Fichalimpismo e lavajatismo têm
a mesma origem ideológica: o moralismo corruptor da ordem constitucional,
assacador da democracia, criminalizador da política, dos políticos e da própria
vontade popular, ao se lastrearem em pródigas cassações de mandatos pela
Justiça Eleitoral, assim como espetaculosas prisões cautelares de políticos
meramente acusados em procedimentos investigativos, feitos com a draconiana
estrutura estatal que desiguala a defesa de cidadãos que tiveram a pachorra de
um dia pensarem em seguir o caminho de cuidar da praça, não mais somente de seu
jardim; ao se alimentarem com decisões judiciais calcadas sobre presunções sem
respaldo na lei, de indícios e não provas, e mesmo delações premiadas obtidas
com a tortura psicológica de opressos e amedrontados delatores, que ansiavam
por respirar liberdade até a exaustão dos pulmões...
O
moralismo, fichalimpista e lavajatista, simplifica o complexo da experiência e
da diversidade humana, dividindo o mundo, arbitrariamente, entre bons e maus,
entre mal e bem, numa doutrina messiânica que lembra a euforia fundamentalista
das cruzadas, das inquisições que levaram à fogueira milhares de pessoas que
pensaram fora "da caixinha" convencionada por quem, com sua
terrificante moral, desejava impô-la aos demais, sem qualquer oposição ou
discussão...
Um
moralismo ao mesmo tempo hipócrita e jacobino; dual, simplista e emotivo, pois
não resiste à razão, ao contraditório e à reflexão pública; que, pela sua
emotividade e irrazão, se alimenta nos vícios do fascismo: o desprezo pelo
poder institucional, pelos partidos, pelos políticos, pelo voto, pela ágora
democrática, pelos valores liberais, pela razão, pela arte, pela ciência, pela
intelectualidade e pelas instituições encarregadas de estruturar a ordem
constitucional que sustenta o pluralismo e a diversidade, o dissenso público e
o debate judicial fundados sobre um sistema de direitos fundamentais escorado
numa Constituição livre e soberana, que dialoga com o patrimônio civilizatório
cristalizado em inúmeros tratados internacionais de Direitos Humanos.
Moralismo
que não quis reconhecer que as alíneas "q" e "g", do inciso
I, do artigo 1º, da Lei de Inelegibilidades, eram inconvencionais, pois
violariam dispositivos do Pacto de São José da Costa Rica, 23.2, que exigem,
para positivar-se inelegibilidades, decisões fruto de processos
penais/processos criminais, e não processos administrativos, sejam esses de
julgamento de contas públicas, sejam processos disciplinares — as alíneas que
sustentaram a impugnação do registro de candidatura, junto ao TRE-PR, do
ex-procurador da República e deputado federal com registro indeferido pelo TSE,
Deltan Martinazo Dallagnol, principal protagonista da "lava jato" nas
hostes ministeriais.
Deltan
sempre fora um incisivo defensor da Lei da Ficha Limpa e de suas exegeses
punitivistas pela Justiça Eleitoral, sendo coerente com sua sanha e faina no
âmbito da "lava jato".
Eis
que o mundo dá suas cambalhotas... e o pau que bate em Chico, bate em
Francisco! E o Chico, o Buarque, disse que tem, e temos, no sangue, os passados
do açoitador e do açoitado; e o outro admirado Chico, o Xavier, não seria
necessário para predizer a Deltan e seus acólitos que, com uma lei tão injusta
e inconstitucional, com uma jurisprudência tão punitivista e olvidadora da
máxima efetividade do voto e das candidaturas, que vitimou milhares de cidadãos
em seus dez anos de aplicação, puniria também os que um dia açoitaram e
estimularam o açoite, ou melhor, um dia do açoitador, outro do açoitado!
E
assolados de dor, tudo com a mesma regra aplicada a Deltan, com o mesmo rito,
com os mesmos conceitos, com as mesmas práticas e exegeses, nesses dez anos,
que são milhares de homens e mulheres, dos mais diversos espectros políticos e
tendências, se igualam ao sofrerem a incidência da mesma lei e das mesmas
jurisprudências, com o aplauso, o estímulo, o discurso de açoitador afoito de
Deltan, que, agora, se viu surpreendido, e, gemendo, constata: — o chicote é
duro, cru e doído, e as costas "dos maus", na democracia do TSE e do
STF, que é a democracia sagrada de todos nós, é igualada às costas "dos
bons": são peles, ossos, músculos e nervos que se contraem sob o açoite de
inconstitucionalidades e inconvencionalidades, que foram aplaudidas por quem se
comprazia em açoitar, mas nunca havia calçado os chinelos do açoitado...
A
razão de sua dor, Deltan, compreendemos... Ter o mandato retirado por decisão
fundada em lei injusta, abastecida por jurisprudência "ofensiva", e o
"bom" ser igualado ao "mau", pois a incidência da regra de
inelegibilidades não vê coração nem passado; ser considerado "ficha
suja", por quem tinha prazer de jactar-se de "incorruptível"
(para lembrar Robespierre), é algo que no espelho moral da existência pode
fazer estranharmos, senão a nossa própria imagem, nossas escolhas...
Talvez agora os "moralistas" defensores da lei ficha limpa passem a ouvir melhor os "constitucionalistas", prosélitos da democracia e do Estado de Direito; talvez as nossas fileiras engrossem, e recebamos "novos cristãos", que, compreensivelmente, renegarão sua fé anterior com o real medo das práticas e entendimentos constantes do malleus maleficarum do moralismo eleitoral brasileiro, que, ao que parece, agora, tardiamente para alguns, foi posto na berlinda!
(*) Advogado
publicista, professor de Direito Eleitoral e de Direito Constitucional e membro
da Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e da
Academia Catarinense de Letras Jurídicas (Acalej).
Artigo
publicado na Revista Consultor Jurídico
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