Foto da Codevasf em Juazeiro -Bahia
A
estatal Codevasf mantém no governo Lula (PT) o mesmo ritmo de distribuição de
equipamentos da gestão de Jair Bolsonaro (PL), agravado agora pelo aumento do
toma lá da cá com entregas a entidades privadas que vão de religiosos a
garimpeiros.
Os
primeiros três meses de gestão mostram uma mudança de perfil dos beneficiários,
com maior proporção de entidades privadas e menor de prefeituras, aumentando
assim o risco de irregularidades.
A
Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba)
foi entregue ao centrão por Bolsonaro em troca de apoio político, em arranjo
mantido da mesma forma por Lula. Na prática, trata-se da abertura de cargos e
verbas em troca de apoio no Congresso.
A
Folha analisou centenas de doações feitas pela estatal. Procurada, a entidade
afirmou que segue critérios técnicos e que as doações ocorrem de acordo com
demandas para cada estado e com o volume de recursos de emendas parlamentares
destinadas para este fim.
As
doações feitas pela Codevasf no primeiro trimestre deste ano somam R$ 106
milhões, valor próximo aos R$ 117,6 milhões no mesmo período do ano eleitoral
de 2022, quando Bolsonaro abriu a porteira para a farra de distribuição de bens
bancada por meio das extintas emendas de relator.
Esses
valores são financiados por emendas parlamentares, que irrigam redutos
eleitorais com tratores, retroescavadeiras, veículos e kits agrícolas, entre
outros, sem adotar critérios técnicos.
De
janeiro a março, o percentual de entregas a entidades privadas, como
associações comunitárias, cooperativas e sindicatos quase dobrou, saltando de
25% em 2022 para 48% na gestão Lula.
Em
2022, as prefeituras lideraram o recebimento de doações, com 74% dos valores.
Neste ano, embora ainda estejam à frente, elas perderam espaço para entidades
privadas, recebendo 52% dos valores.
A
Codevasf, que foi criada sob o foco do desenvolvimento de projetos de
irrigação, agora beneficia até entidade ligada a garimpeiros.
A
Cooperativa de Trabalho Agropecuaristas e Garimpeiros da Bahia, por exemplo,
ganhou o equivalente a R$ 211 mil em um kit com trator agrícola, roçadeira
hidráulica e carreta agrícola. A sede da entidade é o município de Quijingue
(BA), e ela tem como grande a apoiador o vice-prefeito Romerinho (PL).
Romerinho
é apoiador de Lula e milita com o grupo pela legalização do garimpo, que,
segundo ele, tem mais de 15 mil trabalhadores na região, carente de outras
fontes de renda. Recentemente, ele divulgou ter participado com grupo de
audiência na Agência Nacional de Mineração, em Brasília, para tratar do tema.
"Todos
envolvidos, além de serem garimpeiros, são agropecuaristas, trabalham na
agricultura familiar, não só cooperados e familiares dos cooperados",
disse Romerinho.
"Até
mesmo porque, se nós não tivéssemos na natureza jurídica a atividade
agropecuária, a gente não poderia receber o equipamento. A Codevasf fez reunião
antes da assinatura do termo, foi até a cooperativa, visitou a área para poder
comprovar a necessidade do equipamento agrícola."
A
indicação foi feita pelo ex-deputado Marcelo Nilo (Republicanos-BA).
Em
Aracaju, a sede do Lar Evangélico das Assembleias de Deus de Sergipe contou em
meados de março com a doação de uma caminhonete Fiat Toro Volcano, com custo de
R$ 215 mil aos cofres públicos.
Quem
comanda a Assembleia de Deus em Sergipe é o pastor Virgínio de Carvalho, que
foi segundo suplente da senadora Maria do Carmo Alves (PP). Em 2021, ele chegou
a assumir o cargo no recesso para garantir um novo passaporte diplomático para
uma viagem ao Iraque, segundo o site Poder 360.
Essa
entrega pela Codevasf é a segunda em menos de dois anos. Em setembro de 2021, o
lar evangélico já havia recebido um ônibus a um custo de R$ 440 mil, em valor
atualizado.
Procurada
pela Folha, a estatal afirmou que, "apesar de conhecida por atuar em
projetos de desenvolvimento envolvendo irrigação e similares, a Codevasf também
atua em outras frentes sociais, tanto diretamente, como também através de
outras pessoas jurídicas, tal qual o Lar Evangélico".
"Todos
os atos do Lar Evangélico, inclusive o recebimento do veículo acima citado,
aconteceu dentro dos limites dos seus direitos e obrigações", completou.
Outra
entidade religiosa beneficiada neste ano por doação da Codevasf em Sergipe foi
a Cáritas Arquidiocesana de Aracaju. Ela recebeu uma picape Fiat Strada
Endurance, de R$ 102 mil.
Na
ocasião, o superintendente regional da estatal, Marcos Alves Filho, ressaltou o
caráter assistencial da medida, em publicação em rede social.
"Hoje
a Codevasf efetuou a entrega de um veículo à Cáritas Arquidiocesana de Aracaju.
Com isso, damos nossa contribuição às ações dos projetos sociais desenvolvidos
pela Arquidiocese. Feliz de poder auxiliar a Cáritas a realizar o seu papel. A
entidade presta um importante serviço à população em situação de
vulnerabilidade", afirmou.
A
prática de distribuir doações a entidades particulares envolve maiores riscos
de uso indevido e desvios, na comparação com as doações a prefeituras ou outros
entes públicos, uma vez que a fiscalização é mais difícil quando os produtos
saem da esfera do Poder Público.
Auditoria
da CGU (Controladoria Geral da União) realizada em 2022 e divulgada no começo
deste ano constatou que veículos e equipamentos doados pela Codevasf foram
parar em imóveis particulares e eram usados mediante cobranças de taxas e destinados
até a entidades chefiadas por políticos.
A
apuração apontou risco de desvios nas doações dos equipamentos a associações,
que são feitas sem nenhum critério ou estudo técnico e sem acompanhamento da
sua destinação.
Além
de doar veículos a prefeituras, a estatal também beneficia entidades
particulares com entregas que incluem kits de panificação e freezers, barcos de
alumínio, furgões, caminhões basculantes, caminhões de lixo, tratores,
implementos agrícolas, motoniveladoras e retroescavadeiras.
Entre
os itens inusitados há materiais de escritório, notebook, máquinas de costura,
tendas para feira e até uma batedeira de bolo. Para facilitar o escoamento dos
valores, a Codevasf chegou a criar um catálogo de bens para políticos
escolherem como agradar seus redutos e indicarem à estatal onde, quando e como
gastar.
Para
os auditores, esse tipo de prática sem fiscalização acarreta em risco de
vantagens indevidas e desvios.
DISTRIBUIÇÃO
DE PRODUTOS TEM BASE EM PARECERES TÉCNICOS, DIZ ESTATAL
Questionada
sobre o fato de entregar bens para entidades como associação de garimpeiros ou
entidades religiosas, a Codevasf afirmou por nota que "a doação de
máquinas e equipamentos para entidades sem fins lucrativos ocorre quando há
parecer técnico favorável e alinhamento entre a finalidade do bem e as
atividades indicadas no estatuto da instituição beneficiária".
Sobre
a maior dificuldade de fiscalizar bens distribuídos a entidades privadas, a
estatal respondeu que "após a doação, a Codevasf realiza acompanhamento do
uso de bens nas finalidades pelas quais foram doados, por amostragem. Além
disso, denúncias de eventual uso indevido de equipamentos doados, ou de desvio
de finalidade, podem ser encaminhadas por qualquer cidadão à Ouvidoria da
Codevasf".
"A
empresa não mede esforços para assegurar o emprego adequado dos bens destinados
a iniciativas de desenvolvimento regional", completou a Codevasf.
Procurada
pela reportagem, a Cáritas de Aracaju não respondeu ao pedido de manifestação.
Colaborou
Nicholas Pretto
A
reportagem foi produzida em parceria com o Google a partir de coleções de
documentos publicadas na ferramenta Pinpoint
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