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Morreu
nesta segunda-feira, dia 8, a cantora Rita Lee, rainha do rock brasileiro e
nome que despontou durante o tropicalismo com a banda Os Mutantes, na década de
1960. Ela estava em sua casa, na capital paulista, com a família.
Reclusa
nos últimos anos, a cantora recebeu um diagnóstico de câncer de pulmão em 2021.
Após tratamentos, em abril de 2022, a doença teria entrado em remissão.
Rita Lee escreveu sobre sua morte bem ao seu estilo: "Quando eu morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá. Fãs, esses sinceros, empunharão meus discos e entoarão Ovelha Negra, as TVs já devem ter na manga um resumo da minha trajetória. Nas redes virtuais, alguns dirão: Ué, pensei que a véia já tivesse morrido, kkk"
O
trecho está em sua autobiografia, na qual relata no mesmo tom, sempre direto e
reto, tanto passagens divertidas, a exemplo das travessuras na infância e na
adolescência, quanto trágicas, como o abuso de álcool e drogas e o estupro que
sofreu aos seis anos, por um técnico que foi a sua casa consertar uma máquina.
Sem
autopiedade, se refere a si própria com bom humor e sarcasmo, assim como aos
outros um forte traço da construção de sua imagem como a maior roqueira do
Brasil.
."
A experiência artística não começou muito bem. Quando Rita tinha entre seis e
sete anos, a conceituada pianista Magdalena Tagliaferro lhe deu aulas de piano
em troca de um tratamento que fez com seu pai, Charles, dentista de origem
americana.
Em
uma audição, a menina ficou tão nervosa que fez xixi no banquinho do piano. A
professora a aconselhou a não seguir adiante na música porque ela tinha medo de
palco.
Acontece
que Rita, nascida em São Paulo em 31 de dezembro de 1947, morava na Vila
Mariana, e o pacato bairro da zona sul, entre os anos 1950 e 1960, era terapia
contra essa fobia. Na região, colégios tradicionais como o Marista
Arquidiocesano, Cristo Rei, Bandeirantes e o Liceu Pasteur, onde Rita estudou,
realizavam festas juninas, da primavera, pró-formaturas e outras, com palcos
para apresentações em que os alunos experimentavam uma liberdade que
contrastava com o autoritarismo da época.
Rita
não seguiu o conselho da professora de piano e, na adolescência, participou de
diferentes conjuntos, cantando e tentando tocar instrumentos, até chegar ao
quarteto de meninas Teenage Singers.
A
brincadeira ficou mais séria quando elas conheceram, em um festival no teatro
João Caetano, em 1964, os meninos do Wooden Faces, do qual fazia parte Arnaldo
Batista, que já se destacava no baixo. Aproximaram-se, Rita e Arnaldo, com 16
anos, iniciaram um namoro e, com o tempo, as bandas se uniram.
Do
entra e sai de integrantes, ficaram seis, entre eles os namorados e Sérgio,
irmão caçula de Arnaldo, guitarrista, que aos 13 anos largou a escola para se
dedicar à música. Tornaram-se o Six Sided Rockers, que, além dos shows
escolares, tocaram em programas da TV Record.
Em
1966, gravaram um compacto, com novo nome, OSeis. Brigas e rearranjos depois,
viraram três, com Rita Lee (principal vocalista e percussão) e os irmãos
Arnaldo Batista (vocal, teclado e baixo) e Sérgio Dias (vocal e guitarra).
Passaram
a ser Os Bruxos e foram convidados a se tornar banda fixa no programa "O
Pequeno Mundo de Ronnie Von", da Record. O apresentador, fã do livro
"O Império dos Mutantes", sugeriu que se tornassem Os Mutantes. Em 15
de outubro de 1966, estrearam no programa, com ousadia e originalidade,
tocando, com guitarras, a Marcha Turca, de Mozart.
Deram
a primeira entrevista, à Folha, e a cantora assim definiu o grupo: "Ele
vem de outro planeta para tomar conta do mundo. É moço, inteligente e vai
longe, porque encontrou o mundo cheio de mediocridade". Esse moço adorava
guitarra, o que não era visto com bons olhos por gente influente da MPB.
Em
julho de 1967, Elis Regina organizou a Marcha Contra a Guitarra Elétrica,
passeata com artistas contra a "americanização" da música brasileira.
Entre os presentes estava Gilberto Gil, que, curiosamente, três meses depois
protagonizaria o que ficou conhecido como resposta àquela manifestação.
Ele
convidou Os Mutantes para acompanhá-lo na música "Domingo no Parque",
no 3º Festival de Música Popular Brasileira da Record. Com arranjos do maestro
Rogério Duprat, a apresentação marcou a introdução da guitarra na MPB. As vaias
efusivas e a conquista do segundo lugar no festival atestaram que aquilo vinha
mesmo de outro planeta e que ainda ia longe.
Além
de um rock sem a ingenuidade do iê-iê-iê da Jovem Guarda, o grupo chamou a
atenção pelos figurinos e pela performance no palco, e nisso a liderança era de
Rita. Depois de um vestido curto e de um coração vermelho desenhado com batom
na bochecha, no festival de 1967, ela subiu o tom em 1968.
No
3º Festival Internacional da Canção, o FIC, em que Os Mutantes acompanharam
Caetano Veloso em "É Proibido Proibir", Rita se apresentou com um
vestido de noiva emprestado da atriz Leila Diniz, que havia usado o figurino em
uma novela.
O
evento ficou marcado pelo discurso de Caetano contra a reação da plateia, que
vaiava e arremessava ovos, tomates, latas e garrafas nos artistas. "Vocês
não estão entendendo nada. Se vocês forem em política forem como são em
estética, estamos feitos", esbravejou.
Rita
adorou, não tinha paciência com jovens de esquerda que só aplaudiam músicas de
protesto, com letras e arranjos mais óbvios, e não entendiam quão transgressor
podia ser a mistura da canção popular brasileira com o pop internacional em
meio a experimentações sonoras.
Essa
foi a base da tropicália, movimento artístico liderado por Gil e Caetano, do
qual Os Mutantes fizeram parte. No LP "Tropicália", de 1968, a banda
participou de três faixas, entre elas "Panis Et Circensis", com o
provocativo refrão "Essas pessoas na sala de jantar/ Estão ocupadas em
nascer e morrer".
Rita
e os irmãos Batista investiram em composições próprias e lançaram em 1968 o
primeiro LP. Até 1972, quando Rita sairia do grupo, seriam mais quatro, um por
ano, emplacando hits como "Top Top", "Balado do Louco",
"Vida de Cachorro" e "Ando Meio Desligado".
Fizeram
de tudo nesse tempo, programas de TV, shows, entrevistas, musical no teatro,
campanhas publicitárias e até participação em longa-metragem "As
Amorosas", de Walter Hugo Khouri. Além de um som de vanguarda e de
qualidade, os três encantavam com a mistura de carinha angelical a atitudes
endiabradas.
Em
tempos extremamente machistas, causava ainda mais impacto a irreverência de
Rita, que só crescia. Em 1969, ela voltou a usar, no 4º FIC, o vestido de
noiva, mas com um novidade colocou um enchimento na barriga para se fazer de
grávida.
A
performance se deu na apresentação de "Ando Meio Desligado", na qual
os Mutantes partem do efeito da maconha para algo romântico ("Ando meio
desligado/ Eu nem sinto meus pés no chão/ Olho e não vejo nada/ Eu só penso se
você me quer"). Na foto da contracapa do LP, Rita está na cama com os
irmãos Batista, todos nus.
Foi
demais para o conservador Flávio Cavalcanti, um dos mais populares
apresentadores de TV do país, que quebrou o disco no ar. Mais sinal de sucesso,
impossível. Do Brasil, a repercussão passou a ser internacional, com a presença
nos palcos do Midem, tradicional evento do mercado fonográfico em Cannes, em
1969, e do Olympia, em Paris, em 1970. Na turnê francesa, o LSD se tornaria
parte da banda.
Substâncias
alucinógenas passaram a fazer parte do café da manhã, almoço e jantar de uma
espécie de comunidade hippie que os Mutantes formaram na Serra da Cantareira, a
Mutantolândia.
Mais
do que farra, para o trio, assim como para muitos músicos naquela época, as
drogas eram um caminho artístico, de expansão mental. O descontrole, contudo,
logo apresentaria a conta para os jovens. Ao longo da vida, a cantora iria
enfrentar um entra e sai de internações por abuso de álcool e drogas.
Casamento
e banda viveram idas e vindas, até que ambos acabaram para Rita quando ela foi
expulsa dos Mutantes em 1972, episódio do qual guardou muita mágoa. Da raiva e
da depressão, emergiu a ânsia de provar que, apesar de "o clube do Bolinha
dizer que, para fazer rock, era preciso ter colhão, também dava para fazer com
útero, ovários e sem sotaque feminista clichê".
Compôs
"Mamãe Natureza", que falava das incertezas pós-Mutantes: "Não
sei se eu estou pirando/ Ou se as coisas estão melhorando/ Não sei se vou ter
algum dinheiro/ Ou se eu só vou cantar no chuveiro". A música lhe deu a
certeza de que conseguia compor, fazer arranjos, cantar e tocar sozinha. Ela
não estava pirando em seguir carreira solo e logo ia ter "algum dinheiro".
Quem
acreditou na força de Rita sem os Mutantes foi André Midani, presidente da
gravadora Philips, poderoso do mercado fonográfico. Mesmo antes da expulsão,
por insistência dele, a cantora havia feito dois discos solo.
Rita
formou, pós-Mutantes, a banda Tutti Frutti e alugou uma casa na represa
Guarapiranga para a sua comunidade sexo, drogas e rocknroll. Em 1975, o disco
"Fruto Proibido" marcou a nova fase da cantora e uma ruptura na música
brasileira. Com capa cor-de-rosa e canções com temática feminina, como
"Luz Del Fuego", "Ovelha Negra" e "Agora Só Falta
Você", mostrou que era, sim, coisa de mulher "Esse Tal de
Roquenrou", outro sucesso do LP.
Em
1976, ela foi presa por porte de drogas, em um raro momento que estava limpa.
"Se tivessem vindo uns dois meses atrás, iam achar muita coisa, mas agora
estou grávida e não tem nem bituca aqui", disse aos policiais que entraram
no seu apartamento. Rita estava no terceiro mês de gravidez de um namorado
recente, Roberto de Carvalho, baterista da banda de Ney Matogrosso.
Apesar
de não se envolver diretamente com política, a cantora não era flor que se
cheirasse para a ditadura. Inimiga da "moral e dos bons costumes",
amiga de Gil e Caetano, havia testemunhado contra um policial acusado de matar
um rapaz em um de seus shows.
Solo
fértil para a polícia "plantar" maconha. Foi grande a repercussão da
prisão. Quando ela teve um sangramento, Elis Regina foi à delegacia e não saiu
de lá até que um médico fosse chamado, em um episódio que deu início a uma
forte amizade entre as duas e selou definitivamente a paz entre a MPB e a
guitarra elétrica.
A
quebra de fronteiras entre ritmos e influências, com a qual Rita já flertava
antes mesmo da tropicália, tornou-se central na consolidação de sua carreira a
partir do encontro com Roberto de Carvalho.
Com
ele, como escreveu na autobiografia, seu "rockinho radical virou
rockarnaval, tango, bossa, pop, bolero e tal". Roberto foi morar com Rita,
e vivenciaria ao seu lado a gravidez e o nascimento do primeiro filho sob
prisão domiciliar. Era só a primeira barra de muitas que enfrentaria ao lado da
cantora.
Após
o nascimento do primeiro dos três filhos do casal, Rita deixou os Tutti Frutti
e iniciou com o marido a terceira fase de sua carreira, que seria a definitiva
e a mais bem-sucedida. Entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, explodiu
com uma trilha sonora autobiográfica do casal apaixonado, em que uma mulher
pela primeira vez cantava sem pudor sobre desejos sexuais.
Em
uma sequência de hits que fariam dela um fenômeno do mercado fonográfico,
convidava o parceiro para relaxar na banheira, sem culpa nenhuma, em plena
vagabundagem, em "Banho de Espuma", vestir fantasias e tirar a roupa,
molhada de suor de tanto se beijar, em "Mania de Você", ficar de
quatro no ato e exigir "Vê se me dá o prazer te ter prazer contigo",
em "Lança Perfume" esse sucesso, aliás, ganhou versões em várias línguas,
hebraico inclusive.
A
cantora se tornou a cara de um feminismo menos sisudo. Foi convidada pela Globo
para o especial "Mulher 80" e para criar a música de abertura do TV
Mulher, que virou hino feminista, com versos assim: "Sexo frágil/ Não foge
à luta/ E nem só de cama/ Vive a Mulher/ Por isso não provoque/ É cor-de-rosa
choque".
Ela
só não fazia sucesso com censores. Em 1981, por exemplo, das 30 músicas que
submeteu à Censura, só nove foram liberadas para a gravação do LP
"Saúde". Quase todas explodiram nas rádios. No ano seguinte, o LP
"Flagra" vendeu dois milhões de cópias.
Multi-instrumentista,
era versátil não só no palco. A personalidade transparente, o ar despudorado e
o raciocínio rápido tornaram-na figura constante na mídia. Comandou o
"Radioamador", na 89 FM, o "TVLeezão", na MTV, o
"Madame Lee", no GNT, e integrou, no mesmo canal, o primeiro time de
apresentadoras do "Saia Justa".
Em
1991, lançou o LP "Bossanroll", seu projeto financeiramente mais
bem-sucedido. Mas chegou ao fundo do poço. Diante do ultimado de Roberto em
relação a álcool e drogas, foi morar sozinha. Em seu sítio, trocava legumes por
receitas de tarja preta.
Certo
dia, de tão chapada, despencou da varanda, teve o maxilar esfacelado e perdeu
40% da audição do ouvido direito. Roberto cuidou de sua recuperação, e quando
ela tirou os pontos e conseguiu cantar "Mania de Você", a pediu em
casamento. Na saúde e na doença, ainda enfrentariam muitas recaídas de Rita,
até que ela tomasse uma decisão mais firme de ficar "careta" a partir
do nascimento da primeira neta, em 2005.
Foi
o que deu tranquilidade à "vovó do rock" nos últimos anos. Após a
aposentadoria dos palcos, em 2013, viveu com Roberto em uma casa de campo onde
pintava, cozinhava, escrevia e cuidava dos bichos de estimação, esses, aliás,
companhias da vida toda. Ativista da causa animal, teve de tudo, de cães e
gatos a jiboia e jaguatirica.
A
ideia de se aposentar veio na turnê dos 45 anos de carreira, em 2012, que se
encerraria em Aracaju. A despedida foi a sua cara. Ao ver policiais abordando
pessoas da plateia que fumavam maconha, interrompeu o show: "Me dá esse
baseadinho que eu vou fumar aqui e agora. Seus cafajestes, filhos da
puta". Foi detida.
Com
o incidente, uma nova despedida foi marcada para 2013, no Anhangabaú, em 25 de
janeiro, aniversário de São Paulo. Nada mais justo que tenha sido na cidade que
nasceu e da qual, como cantou Caetano, Rita foi a mais completa tradução.
Na
autobiografia, escreveu que seu maior gol foi ter feito um monte de gente feliz
e que, quando morresse, cantaria para Deus: "Obrigada, finalmente
sedada". E, seu epitáfio, definiu, deve ser o seguinte: "Ela não foi
um bom exemplo, mas era gente boa".
Texto: LAURA MATTOS/Folha de S. Paulo
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