Em
um surto de sinceridade, o presidente Lula da Silva afirmou que a meta de zerar
o déficit fiscal no ano que vem não precisa ser cumprida. Segundo ele, o
resultado dificilmente será atingido sem a realização de cortes orçamentários
em investimentos e obras públicas, algo que ele não deseja fazer. “A gente não
precisa disso”, disse o presidente, referindo-se à meta de déficit zero, em
café com jornalistas no Planalto na sexta-feira passada.
Quem escolhe a vida pública sabe que existem muitas coisas que não devem ser ditas – não porque elas não sejam verdade, mas pelos efeitos indesejados que essas verdades podem gerar. Mas foi exatamente isso que o presidente fez na semana passada, ao jogar uma pá de cal sobre a meta a que o próprio governo se impôs.
Havia
sido uma semana muito positiva no mercado financeiro. A prévia da inflação
reforçou as apostas dos analistas sobre a manutenção do ritmo de redução da
taxa básica de juros. Após a fala do presidente, o dólar voltou a romper o
patamar de R$ 5,00, a bolsa caiu e os juros futuros dispararam, desancorando
expectativas que guiam as decisões do Banco Central (BC) a menos de uma semana
da reunião em que o Comitê de Política Monetária (Copom) anunciará a taxa
básica de juros.
Como
esperado, a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), saiu em defesa do
chefe. Segundo ela, o mercado financeiro teve uma reação irracional, pois nunca
acreditou de fato na meta do déficit zero. Hoffmann, no entanto, não é nenhuma
amadora e sabe exatamente o impacto da mensagem que Lula da Silva passou.
Quando
os economistas demonstram ceticismo em relação ao déficit zero, cumprem sua
obrigação de alertar a sociedade quanto à solidez das contas públicas. Quando a
oposição ironiza o compromisso, faz o jogo político que dela se espera. Quando
o Congresso resiste à meta, tenta ampliar seu acesso ao Orçamento. Quando o
presidente da República em pessoa menospreza a meta anunciada pelo seu próprio
ministro da Fazenda, está sendo apenas irresponsável.
Ainda
que inexequível, o déficit zero é sempre um objetivo defensável. Ele expressa
uma disposição inicial ao acerto, o que já é muita coisa. Manter o objetivo
inalterado significa caminhar em sua direção, o que implica pronta e imediata
rejeição de medidas que abram mão de receitas ou aumentem gastos.
Sabe-se
que o mundo real não é exatamente assim. A própria pandemia de covid-19 mostrou
o quanto demandas inesperadas podem surgir sem aviso prévio e precisam ser
acomodadas. Não há, no entanto, nenhum motivo, neste momento, para renunciar
previamente à meta no primeiro ano em que ela seria testada.
Quando
o presidente fala em “obras”, deputados e senadores entendem “emendas”. Ambas
fazem parte da mesma rubrica de despesas não obrigatórias. A meta de déficit
zero exige um corte na verba de gastos discricionários de até R$ 53 bilhões, de
forma que as emendas não seriam poupadas. É disso que se trata: Lula está mais
preocupado em saciar a fome de sua base fisiológica do que em bancar o
compromisso de equilíbrio fiscal assumido pelo ministro Fernando Haddad.
O
Legislativo se sente credor do governo e sabe que é essencial para que a agenda
do Executivo continue a avançar. Depois de meses de negociações difíceis e
custosas, a Câmara aprovou o projeto de lei que tributa fundos exclusivos e
offshore. No Senado, a despeito das críticas, a reforma tributária caminha para
ser aprovada com benefícios superiores aos custos.
Em
troca, parlamentares querem a garantia de suas emendas, mesmo que elas
comprometam o arcabouço a que eles mesmos deram aval. Afinal, se esse contexto
piorar as expectativas a ponto de elevar a inflação e impedir a redução dos
juros, Lula retomará as críticas ao Banco Central, isentando o Congresso e a si
mesmo de qualquer responsabilidade.
O
ministro Haddad sai derrotado do episódio e sem qualquer moral para cobrar
alguma austeridade da Câmara e do Senado. Quem realmente perde, no entanto, é o
País, sobretudo os mais pobres, que Lula diz defender.
Texto opinativo do Estadão (História por Notas & Informações)
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