Cleriston Pereira da
Cunha, no canto inferior esquerdo, disse em audiência no fim de julho que
sofria de problemas de saúde na Papuda Foto: Reprodução / STF
(*)
JR Guzzo
Suprema
Corte não poderia ter cárcere nenhum, nem estar envolvida, nunca, num episódio
como esse
A
morte de Cleriston Pereira da Cunha, um dos presos nos tumultos do dia 8 de
janeiro em Brasília, é o sinal mais alarmante da situação de desordem que o STF
criou no País com sua decisão de tornar-se um braço da justiça penal, delegacia
de polícia e guarda penitenciária, tudo ao mesmo tempo.
Cleriston
estava preso há quase onze meses no presídio da Papuda, sem julgamento, por
força de uma prisão preventiva que nunca foi encerrada. Precisava de cuidados
médicos urgentes, com internação em hospital, pelo menos desde o fim de
fevereiro; uma médica de Brasília, em laudo oficial, informou à autoridade, no
dia 27 daquele mês, que o preso corria “risco de morte” se continuasse na
prisão. Seu advogado, com base nesse atestado, pediu que fosse liberado para
fazer tratamento urgente de saúde. O próprio Ministério Público, enfim, pediu
no dia 1º. de setembro a soltura de Cleriston, alarmado com a deterioração do
seu estado de saúde.
O
relator do processo, o ministro Alexandre de Moraes, ignorou o laudo, o pedido
da defesa e a solicitação do MP. Na última segunda-feira, aos 45 anos de idade
e com duas filhas, Cleriston morreu no pátio da Papuda.
Existe
algo profundamente errado numa sociedade quando um cidadão morre num cárcere da
Suprema Corte de justiça. Ela não poderia ter cárcere nenhum, nem estar
envolvida, nunca, num episódio como esse. Mas o STF se tornou responsável pela
gestão do Código Penal, comanda o processo de cidadãos que legalmente não pode
processar e decide se um preso tem ou não tem problemas de saúde – ou se deve
ou não ir para o hospital. Fica também responsável, aí, pela sobrevivência
física dos seus presos, como se fosse uma diretoria de presídio.
Como
poderia ser diferente? A única pessoa no mundo que pode tomar qualquer decisão
sobre os mais de 1.000 réus do quebra-quebra de janeiro, transformado pelo STF
em “tentativa de golpe de Estado”, é o ministro Alexandre de Moraes – nem o
Papa Francisco pode fazer alguma coisa a respeito. O resultado obrigatório de
uma situação dessas é que a culpa por tudo o que acontecer de errado com
qualquer pessoa sob a sua custódia vai ser unicamente do STF, sempre. É uma
aberração – a mais chocante que o Poder Judiciário já impôs ao Brasil.
A
tentativa de defesa do STF neste caso é mais um rompimento flagrante com o
raciocínio lógico – algo que se tornou comum, aliás, no julgamento das
perturbações que o Supremo vem causando há anos na ordem do país. Os
argumentos, basicamente, se resumem a sustentar que a culpa pela morte de
Cleriston é do próprio Cleriston. Ao participar dos “atos golpistas” – coisa
jamais demonstrada, pois ele nunca chegou a ser julgado – a vítima “assumiu os
riscos” de morrer na prisão.
Como
assim? Cleriston não morreu por ter sido acusado de tomar parte na baderna de
Brasília, ou porque foi preso. Morreu porque o STF não deixou que ele saísse da
cadeia para fazer tratamento médico indispensável. Também não estava pedindo
privilégio nenhum: bicicleta ergométrica privada, menu especial, home theater
na cela, nada disso. Só queria ir para o hospital, com base num laudo médico
oficial – o que era seu direito e obrigação dos carcereiros. Alexandre de
Moraes não deu permissão; ninguém mais poderia ter dado, no mecanismo de
demência criado no Brasil de hoje pelo STF.
A
sociedade brasileira está tomada por uma doença séria – a convicção de que os
“bolsonaristas” não são seres humanos, ou cidadãos como os demais, e, portanto,
não devem ter direitos civis. Ninguém diz que é assim, mas é exatamente assim
que muita gente pensa, e é com essas crenças que age. A própria palavra foi
transformada num insulto. No caso de Cleriston, o procedimento padrão foi
dizer: “Morreu um bolsonarista”. Não morreu um cidadão brasileiro a quem o STF
estava obrigado a prestar atendimento médico de emergência. Foi só mais um
“bolsonarista”, ou “fascista”, ou “golpista”. Aí vale tudo, e nada está errado.
Um país que aceita como normal esse tipo de deformação está, de fato,
precisando de tratamento urgente.
Fonte: Estadão
(*)
jornalista brasileiro, colunista dos
jornais O Estado de São Paulo, Gazeta do Povo e da Revista Oeste, publicação da
qual integra também o conselho editorial.
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