Foto: BRUNO ROCHA/ENQUADRAR/ESTADÃO CONTEÚDO
Economistas criticaram duas questões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), realizado neste domingo, 5, por 3 milhões de alunos no País, que abordam o agronegócio e a competitividade econômica. Uma delas tinha um texto que dizia que, no Cerrado, o “conhecimento local” está subordinado “à lógica do agronegócio” e que o “capital impõe conhecimentos biotecnológicos” que trazem consequências negativas para a população do campo. Em outra questão, relaciona-se a competitividade na economia à pratica de dumping.
“É
de um esquerdismo raso, o que me parece ter um viés doutrinário”, diz o
economista Alexandre Schwartsman. Para ele, ex-diretor do Banco Central, as
questões do Enem refletem um pensamento de muitos professores brasileiros e não
necessariamente apareceram agora por se tratar do governo de Luiz Inácio Lula
da Silva (PT).
Em
reação, a Frente Parlamente do Agronegócio quer a anulação de questões da prova. Também pretende convocar o
ministro da Educação, Camilo Santana (PT), para dar esclarecimentos.
A
prática de dumping - quando se baixa o preço deliberadamente para eliminar a
concorrência - é condenada pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e,
segundo os especialistas ouvidos pelo Estadão, não pode ser relacionada à
competitividade.
O
texto selecionado é da autoria do geógrafo Milton Santos, premiado
internacionalmente e morto em 2001, no livro Por uma outra globalização.
Do pensamento único à consciência universal. Segundo Schwartsman, Santos é um
autor “importante”, mas com “viés marxista”.
“A
competitividade é vista como algo bom na economia. Um país se tornar
competitivo é investir na infraestrutura, na educação”, afirma Armando
Castelar, professor e pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia
da Fundação Getulio Vargas (FGV). Para ele, as duas questões têm textos
“carregados e adjetivados”.
As
questões do Enem são elaboradas por professores externos ao Ministério da
Educação (MEC) e depois pré-testadas para verificar a escala de dificuldade,
capacidade de diferenciar os níveis dos candidatos e probabilidade de acerto ao
acaso. Um dos problemas recorrentes do Enem é a baixa quantidade de perguntas
no banco de itens do exame, o que muitas vezes leva ao uso de questões que não
passaram por essa calibragem.
Procurado,
o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão do MEC
responsável pela prova, informou que “não interfere nas ações dos colaboradores
selecionados para compor o banco (de questões)”. “O processo envolve
as etapas de elaboração e revisão pedagógica dos itens, além de validação pelo
trabalho de uma comissão assessora.”
A
questão que menciona o Cerrado também demonstra “preconceito” segundo
especialistas ouvidos pelo Estadão. “O Centro-Oeste tem obtido ganhos
significativos em termos de emprego e renda e caminha para ter provavelmente a
menor desigualdade de renda do País na próxima década”, diz o economista da MB
Associados, Sergio Vale.
Para
ele, o agronegócio aparece sempre com “um viés negativo, como se fosse um vilão
a ser abatido”. “Mas não fosse o agronegócio e as demais commodities o País
estaria em crise econômica profunda até hoje”, completa.
“A
questão traz uma visão para o aluno muito limitada de mundo, de
desenvolvimento”, completa Letícia Jacintho, que é presidente da De Olho no
Material Escolar, entidade ligada ao agro que trabalha para mudar a visão do
setor nas escolas. Segundo pesquisa encomendada pelo grupo, mais de 90% dos
textos que se referem ao agronegócio nos livros didáticos do País não têm
fontes científicas. “O Enem reflete o acontece há 20 anos nas escolas. Há uma
distância da educação dos setores produtivos. Por falta de conhecimento, vão se
criando narrativas com preconceito”, diz.
Ela
e outros especialistas afirmam que pesquisadores da Embrapa levaram tecnologia
para desenvolver a região do Cerrado brasileiro, que era improdutiva até os
anos 1970. “A economia na região vem crescendo muito à frente do Brasil, a
renda per capita crescendo mais rápido, as pessoas melhorando de vida”, diz
Castelar. “É uma visão anti-agro infantil. Se não fosse o desenvolvimento
tecnológico nos últimos 40 e 50 anos, aquilo lá seria terra arrasada”, completa
Schwartsman.
A
questão cita como “fatores negativos” do agronegócio a “mecanização pesada
(...), as chuvas de veneno e violência contra a pessoa”. A resposta certa,
prevista no gabarito do Enem, é a alternativa A, que diz que o ocorre na região
leva a um “cerco aos camponeses, inviabilizando a manutenção das condições de
vida”.
O
trecho faz parte de um artigo que foi publicado na Revista de Geografia da
Universidade Estadual de Goiás, de autoria de três professores de universidades
públicas goianas. Segundo o texto, o artigo conclui “que a renda da terra está
no centro das disputas entre os agentes do capital e o campesinato no Cerrado”.
Para
professores do Curso e Colégio Objetivo, no entanto, a prova não teve problemas
e abordou assuntos comuns à sala de aula. As questões criticadas estavam em
Ciências Humanas, referindo-se a conteúdos estudados em Geografia. Para o
professor do Objetivo Eduardo Brito, elas mostram uma “visão crítica” que
precisa ser levada ao aluno. “É uma Geografia que faz o aluno pensar”, afirma.
Santos,
autor do texto na questão sobre globalização, é amplamente estudado no ensino
médio e considerado uma “referência”, segundo Brito. “Não vejo viés ideológico,
o trecho fala de como a competitividade pode gerar desigualdades”, completa.
O
governo de Jair Bolsonaro (PL) foi duramente criticado por especialistas em
avaliação por criar uma comissão que acabou retirando do banco de perguntas do
Enem 24 questões que não passaram na “leitura crítica”, sob o argumento de
serem “sensíveis”. Depois, 13 delas voltaram a ser incluídas e 11 foram
vetadas.
Mesmo
assim, apesar das falas do ex-presidente de que pretendia mudar o perfil do
Enem houve pouca interferência nas provas nos quatro anos de governo; a redação
em 2022, por exemplo, foi sobre “povos tradicionais”. A manutenção do perfil da
prova foi interpretada por especialistas tanto pela resistência dos servidores
do Inep, que mantiveram os processos técnicos, quanto pela pouca quantidade de
questões disponíveis no banco.
Fonte: Estadão
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