Pesquisadores
e pesquisadoras da biologia da conservação estão preocupados com seus projetos
e estudos. A pandemia impactou negativamente a conservação de espécies raras e
ameaçadas que sofrem pressão da caça, tráfico e perseguição. Muitos desses
projetos tem vínculos fortes e antigos com as comunidades que vivem próximas
das áreas de ocorrência de espécies ameaçadas. Com o início da pandemia e as
restrições de segurança sanitárias, a maioria das atividades em campo parou.
Era
nesse contexto, numa busca aflitiva para obter informações sobre uma espécie
ameaçada, que entrevistei – uma vez por videoconferência e outra pessoalmente –
a bióloga Erica Pacífico no segundo semestre de 2020. As imagens da reportagem
foram produzidas antes da pandemia pelo fotógrafo João Marcos Rosa, que
acompanha o trabalho de Érica desde 2013.
Nossa
última conversa foi em dezembro, quando ela voltava de uma atividade em campo
após meses isolada em São Paulo (SP), onde vive. Fundadora e coordenadora do
projeto Grupo de Pesquisa e Conservação da Arara-azul-de-lear,
Erica estuda a Anodorhynchus leari – ave rara, em perigo de extinção
e endêmica da Caatinga do norte da Bahia. O ‘campo’ são as unidades de
conservação Boqueirão da Onça e a Ecoregião do Raso da Catarina, na Bahia.
Entre
a euforia de ter finalmente voltado para o amado sertão, Erica me explicava que
a saída, com todas as medidas de segurança, foi no momento limite para o
projeto de conservação: ou se toma a iniciativa ou os dados começam a
desaparecer.
“Perdi
uma temporada reprodutiva inteira das araras[-azuis-de-lear]”, disse Erica.
“Depois de dez anos de monitoramento contínuo – avaliando as variações e
influências do clima na oferta de alimento e na produtividade das aves, números
de filhotes que saem dos ninhos e outras informações –, tivemos um bloqueio,
uma quebra, um corte nesse ano de 2020 e isso vai ficar como um marco na
história do projeto e em toda a pesquisa científica.”
O
retorno à Caatinga foi para acompanhar os preparativos para a segunda soltura
de aves da história do projeto – algo que a pesquisadora e sua equipe não quiseram
abrir mão, visto o trabalho já desenvolvido por diversas pessoas e institutos.
Para isso, era preciso realizar uma vistoria da área, avaliar as seis araras e
instruir a equipe de biólogos que permanecerá na região por quase 120 dias, o
mais longo período até agora. “A equipe acabou se isolando com a comunidade
para evitar o risco deste período da pandemia”, contou Erica.
“Recebemos
seis aves do Programa de Cativeiro das araras-azuis-de-lear, do
ICMBio. Duas vieram do Loro Parque Fudanción, um parceiro nosso da Espanha, e
outras quatro vieram do Programa de Resgate da Arara-azul-de-lear, um trabalho
feito pela Síntese, Loro Vet e Fazendo Cachoeira”, diz Erica. “São animais que
foram confiscados do tráfico ou se acidentaram na natureza, foram
resgatados com a ajuda da comunidade e recuperados. Neste momento, a gente não
tinha a opção de não receber as aves. Se não, ficaríamos prejudicados com o
cronograma e o plano de revigoramento populacional. Os animais tinham que vir.”
Na
primeira vez, em janeiro de 2019, também seis aves foram soltas no Boqueirão da
Onça. Dessas, quatro ainda são monitoradas e já interagem com as araras
remanescentes.
O
programa do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)
trabalha com instituições que reproduzem animais ameaçados em cativeiro no
Brasil e algumas no exterior. As aves são distribuídas de acordo com as
relações de parentesco entre elas para não jogar um grupo endogâmico, ou
geneticamente parecido, na natureza.
Mas
o plantel de animais nascidos em cativeiro ainda é pequeno se comparado ao
número de animais resgatados e confiscados do tráfico. Para Erica, trata-se um
sinal de que ainda há uma demanda grande por esses bichos, o que exige muito
trabalho e envolvimento com as comunidades.
As
aves passaram por um período de quatro meses de adaptação e estão na etapa
final para serem soltas, o que deve ocorrer em fevereiro.
Símbolo
de resistência
A
fala de Erica é animada, com resquícios da felicidade de ter estado no sertão,
local que ela considera seu segundo lar e onde já dedicou mais de uma década de
estudos e trocas de experiências de vida com a comunidade local.
A
arara-azul-de-lear é um símbolo de resistência da Caatinga. Descrita como
espécie em 1856 pelo ornitólogo francês Charles Lucien Bonaparte através de
indivíduos taxidermizados, ela ficou desaparecida – somente em 1978 foi
redescoberta e teve sua área de abrangência, no nordeste da Bahia, reconhecida.
Devido à pressão da caça para o tráfico e destruição de habitat, chegou a ser
considerada funcionalmente extinta no Boqueirão da Onça.
Em
1995, apenas dois indivíduos restavam no Boqueirão da Onça, região que fica
isolada da área de ocorrência maior, a Estação Ecológica do Raso da Catarina,
no nordeste da Bahia, com aproximadamente 2 mil indivíduos.
“O
projeto de soltura tem o papel de revigorar a população, ou seja, restaurar
aquela população que deveria existir ali, que provavelmente, quando declinou na
década de 1990, era de 30 a 60 indivíduos, como relatado por moradores locais”,
diz Erica. “O que sabemos é que a pressão ali foi principalmente captura e
caça. Não tem como fazer esse trabalho de revigoramento sem trabalhar
intensamente com a comunidade.”
Resgatar
essa ‘área de das araras’, segundo Erica, pode trazer benefícios para todo o
meio ambiente. Quando se revigora uma espécie de arara, o ambiente tem força
para manter a biodiversidade. Uma única arara-azul-de-lear, por exemplo, pode
voar até 70 quilômetros por dia – sua área de influência é imensa. Por todo
esse trajeto, elas dispersam sementes dos alimentos que consomem:
principalmente a palmeira licuri, mas também outras 30 espécies vegetais da
Caatinga. “Por isso a importância de proteger diferentes fragmentos da
Caatinga, e não só o licuri”, defende Erica.
Trabalhar
com a conservação dessa ave no interior da Bahia é olhar para as muitas
relações socioambientais em seu entorno – e isso requer uma sensibilidade
grande. Nas conversas que tivemos, Erica, aos poucos, vai deixando transpassar
na sua fala como consegue juntar pessoas e meio ambiente.
“Sabemos
que existe uma interação complexa da arara com a comunidade local”, diz ela.
“Existem atividades tradicionais que acontecem no lugar onde a gente está, na
área da arara, relacionadas ao extrativismo do material que compõem o alimento
da espécie, como, por exemplo, o trabalho com a palha do licuri”, usada na
confecção de artesanato, sacolas, chapéus, vassouras, espanadores, entre
outros.
Esse
olhar sistêmico se estende às pelo menos trinta pessoas, entre estudantes e
pesquisadores, envolvidas nos projetos que Erica desenvolve na Caatinga.
“Existe uma colaboração muito grande com pessoas que são interessadas na
conservação da espécie”, diz ela.
Do
mangue ao sertão
Como
estudante de biologia, Erica começou suas pesquisas distante da secura do
sertão, em um ambiente muito diferente: os manguezais do Sudeste. Ela fez
estágio com o biólogo Fausto Pires de Campos, referência nos estudos com aves
marinhas insulares. Foi daí que surgiu o interesse de Erica em estudar os
animais alados.
Depois,
já recém-formada, a bióloga foi trabalhar no Zoológico de São Paulo, onde
conheceu a colega Flávia
Miranda – outra personagem da série
de reportagens Mulheres na Conservação.
Flavia,
ao telefone, recorda o período: “Erica Pacífico reparte, consegue agregar
pessoas, se doa para a pesquisa e para colegas. Isso é algo raro, ainda mais
sendo uma pesquisadora tão jovem.”
Os
primeiros encontros com as araras-azuis-de-lear aconteceu por acaso, enquanto
cuidava de outra espécie de psitacídeos. Erica havia sido
designada responsável técnica pela transferência de Presley – um
dos últimos indivíduos de ararinha-azul, espécie extinta na natureza – do
zoológico de São Paulo para um criadouro especializado em reprodução de
aves ameaçadas da Fundação Lymington em Juquitiba (SP). No mesmo
criadouro, também viviam algumas araras-azuis-de-lear.
Em
2007, durante estudos com o biólogo e professor Luis Fabio Silveira, do Museu
de Zoologia da Universidade de São Paulo, Erica soube de uma oportunidade em
uma reserva em Canudos. A Fundação Biodiversitas queria montar um projeto de
pesquisa com araras-azuis-de-lear e buscava especialistas.
Na
época, sabia-se muito pouco sobre a reprodução das araras. A espécie faz ninho
em tocas dos imponentes paredões e desfiladeiros da Ecoregião do Raso da
Catarina, um desafio logístico para a pesquisa em campo.
Mas,
para Erica, o desafio foi o combustível para começar a trabalhar com biologia
reprodutiva – aprender a marcar os filhotes, entender as taxas de fecundidade,
a influência do clima no sucesso reprodutivo e os padrões da espécie na
natureza.
Em
2008, o projeto recebeu financiamento da Fundação Grupo Boticário e Erica pode
então iniciar sua relação profunda com o sertão. Aprendeu a fazer rapel e a
trabalhar em espaços confinados para poder acessar os ninhos e começou a se
acostumar com a aridez do trabalho de campo na Caatinga. Logo na primeira
campanha, desceu em três ninhos, para o assombro dos homens que a seguiam.
O
sorriso aberto não esmoreceu e permanece até hoje, mesmo ao me contar dos
desafios do ambiente e a desconfiança que precisou ser vencida no trabalho com
os guias locais, todos homens.
Segundo
Erica, o sertanejo daquelas bandas não está acostumado a ver uma mulher fazendo
rapel, ou perguntando tantas coisas. Os primeiros quatro anos do projeto na
região de Canudos foram assim – conquistas, respeito, afinidade e empatia.
O
cooordenador de campo e responsável pelas solturas no Boqueirão da
Onça Thiago Filadelfo, amigo de Erica e parceiro de trabalhos desde a
segunda campanha, em 2008, atesta a forma como ela venceu essa etapa em campo.
Os dois se conheceram em congressos de ornitologia e até hoje cultivam uma
relação de respeito e admiração mútua. “Acho a Erica corajosa, e me mostra isso
sempre quando vamos a campo”, diz ele. “[Tem] jogo de cintura para lidar com os
problemas da rusticidade do trabalho braçal em campo e para se impor como
pesquisadora à frente do projeto.”
Ele
se refere a uma dinâmica embaixo de sol extenuante e à busca
por informações históricas sobre a relação das comunidades com os
animais e ambientes, conseguidas em inúmeras rodadas de conversas e entrevistas
que ambos fizeram ao longo dos anos.
Ao
ouvi-la falar sobre o sertão baiano, parece que o tempo foi moldando a
personalidade da pesquisadora, que só vê a beleza do ambiente e das pessoas. “A
relação do sertanejo com os bichos tem muitas vertentes. Tem a dependência das
coisas da natureza e a forma como lidam, no dia a dia, com as necessidades que
o ambiente impõe, como a questão da água, como lidam com a sazonalidade das
chuvas”, diz Erica. “E é comovente como são hospitaleiros. Eu senti um
acolhimento muito grande.”
Aos
poucos, ela foi conquistando e se enchendo de sertão. Quando me mostra as fotos
que contam histórias de pessoas que a receberam, Erica se emociona. Seu Dorico,
presente nos primeiros passos do projeto, acompanha a bióloga até hoje. Ela me
conta que ouviu muitos causos dos mais de 100 velhinhos que entrevistou para,
através da memória, conhecer a distribuição dos ninhos históricos.
“Quando
comecei meu trabalho, estava muito focada em descrever dados básicos da
biologia da espécie. Fazia descrição quando as araras punham ovos, quantos
estavam férteis, quantos nasciam e quantos deixavam os ninho e voavam
com sucesso”, diz Erica. “De repente, começam a surgir as perguntas: por
que esse casal se reproduz melhor que o outro? O que essas fêmeas comem
que influencia a sobrevivência dos seus filhotes?”
Muitas
das respostas, no entanto, vinham das conexões entre as comunidades e os
animais. “Vou para campo e vejo que ela come de uma árvore que tem dentro da
casa das pessoas, cuja palha eles usam para construir abrigo para o gado”, diz
ela. “Tem um emaranhado de coisas relacionadas à conservação da arara. É
complexo, mas, vendo o contexto social do ambiente, fica mais fácil responder
às perguntas de base da biologia da espécie.”
Projeto
maternidade
Em
2014, com o projeto de estudo encaminhado em Canudos, as informações acumuladas
ao longo de sete anos e colaborações em publicações científicas, Erica foi
fazer um doutorado em Sevilha, na Espanha, como a dinâmica da população da
arara-azul-de-lear é influenciada pela genética e dieta usando técnicas de
isótopos estáveis. Ou seja, muito tempo dedicado ao laboratório.
Mas
isso não a afastou do sertão. Pouco tempo depois, recebeu uma proposta de
trabalho da empresa de energia Enel, que pretendia construir um parque eólico e
precisava monitorar dois indivíduos do Boqueirão da Onça. Ela sugeriu então um
projeto ainda mais ambicioso: repovoar a região com araras-azuis-de-lear.
Com
o financiamento aprovado, começaram-se as atividades em campo, com Thiago
Filadelfo à frente, enquanto Erica ia e voltava da Espanha para acompanhar o
projeto. Construíram uma casa de campo, começaram a estudar a área potencial de
soltura. O resultado são as seis araras ainda monitoradas hoje – as duas
originais e quatro da primeira soltura –, além das outras seis que serão soltas
em fevereiro de 2021.
No
meio de tudo isso, a maternidade. Depois de um curto período afastada, Erica
voltou a campo com Samuel, na época com 12 meses, no colo. “Pensei que, se
consegui fazer tudo o que fazia até agora, iria conseguir fazer sendo mãe”,
diz.
Erica
parece ser capaz, como poucos, de unir ciência, observação de campo, genética,
biologia e distribuição da espécie. Só assim para entender, através de um
mergulho pela essência do Brasil, que a saúde das populações de
arara-azul-de-lear é essencial para conservar e recuperar fragmentos
importantes do único bioma exclusivamente brasileiro, a Caatinga.
A
empatia e energia de Erica, transmitidas nas conversas trocadas ao longo deste
período de pandemia, me transportaram para o sertão, para a aridez e a beleza
rústica da Caatinga e da cultura sertaneja. A disposição de criar uma teia de
relações tão similar às que as araras constroem parece fazer de Erica a pessoa
perfeita para liderar esse grande esforço pela natureza. Ambiente, pessoas,
animais – a síntese da conservação.
Esta
reportagem foi parcialmente financiada pela Fundação Toyota
do Brasil e originalmente publicada em 9 de fevereiro de 2021 na National Geographic Brasil.
Erica Pacífico é mestre
em zoologia pela Universidade de São Paulo e doutora em biologia da conservação
pela Universidade de Pablo de Olavide em Sevilha. Seu trabalho contribui para a
conservação e ampliação das populações da ameaçada arara-azul-de-lear.
Foto: João Marcos Rosa
Fonte: Texto Paulina Chamorro
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