Dia
21 de novembro de 1964 ouvi pelo rádio o jogo mítico entre Santos e Botafogo de
Ribeirão Preto. Ouvi com fervor místico, diga-se. Naquele tempo o futebol era
tudo e o Campeonato Paulista era o máximo para nossas cabecinhas regionais.
Havia um ingrediente a mais na partida além dos pontos em disputa (eram dois
por vitória, um por empate, na época). Pelé brigava pela artilharia pau a pau
com Flávio "Minuano", centroavante gaúcho contratado pelo
Corinthians. Antes absoluto, o Rei poderia ver quebrada a série como primeiro goleador
paulista que começara em 1957 e seguia ininterrupta até então.
Naquele
ano de 1964 o Brasil já quebrara outra série - a democrática - e, desde abril,
vivia sob uma ditadura militar. Mas, para falar a verdade, nós, meninos, não
prestávamos lá muita atenção às desgraças políticas do país. A conscientização
viria anos depois, mas, por enquanto, se houvesse bola rolando, para nós estava
tudo bem. Ainda mais quando ela rolava como naquele tempo, redondinha, em
especial quando tocada por aqueles magníficos jogadores do Santos Futebol
Clube.
Nesse
dia, o Santos entrou em campo com a seguinte escalação: Gylmar, Ismael,
Modesto, Haroldo e Geraldino; Lima e Mengálvio; Toninho, Coutinho, Pelé e Pepe.
Era ou não um time dos sonhos? Para se ter ideia: em 1964, o Santos ganhou 13
dos 15 títulos que disputou. Só isso.
O
Santos era grande, mas não invencível, pois nenhum time de futebol é imbatível
e não existem gênios infalíveis. Para comprovar, três dias antes, o Santos
havia sido goleado por 5 a 1 pelo Guarani, no Brinco de Ouro da Princesa, em
Campinas. Ainda por cima, Pelé havia perdido um pênalti. Então veio o jogo
contra o Botafogo de Ribeirão Preto, na Vila. O desejo da torcida, e do time,
era vingar-se da derrota do primeiro turno, em Ribeirão, quando o Botafogo
havia vencido por 2 a 0.
Também
havia a expectativa para que Pelé fizesse gols, como habitualmente fazia, para
seguir na disputa com o centroavante do arquirrival Corinthians. Aliás, tudo
que dizia respeito ao Corinthians era objeto de uma ancestral rivalidade para
os peixeiros - dos títulos à artilharia, sem esquecer o tabu, naquele momento
em vigência, que impedia a vitória do alvinegro da capital sobre o adversário
da baixada santista. A rivalidade - quando não descamba para a violência - é um
ingrediente importante do futebol. Apimenta os jogos, dá mais sabor às vitórias
e aumenta a dor nas derrotas. Deixa a vida mais intensa.
O reencontro com o Botafogo saiu melhor do que a encomenda para o time da Vila: aos 20 minutos do primeiro tempo, o Santos já vencia por 4 a 0. Três de Pelé! Um de Pepe, olímpico.
Mesmo
com a vitória garantida, o time da Vila não diminuiu o ritmo. E os gols foram
saindo impiedosamente até se completar o placar histórico de 11 a 0. Pelé fez
oito (!). E deixou Flávio para trás. Para registro, os artilheiros daquele dia
foram Pelé aos 4', 8', 16', 37', 39', 70', 71' (pênalti) e 73'. Pepe aos 19',
Coutinho aos 24' e Toninho aos 89'.
Como
o resultado, o Santos abriu caminho para mais um título paulista (o oitavo) e
Pelé manteria sua série ininterrupta como artilheiro. Foi o goleador do
Campeonato Paulista de 1957 a 1965, em seguida. E, depois, de forma
"avulsa" em 1969 e 1973. Para quem gosta de números redondos, em 1958
Pelé marcou seu maior número de gols num Campeonato Paulista. Quantos? 58, nem
um a mais, nem um a menos. Naquele ano de 1964, Pelé marcaria
"modestos" 34 gols. Apenas no Paulista, claro. Flávio, ultrapassado
em 1964, seria artilheiro do Campeonato Paulista em 1967, com 21 gols,
superando Pelé.
Além
dos dois pontos na tabela e do acerto de contas entre artilheiros, houve outros
desdobramentos da goleada. Conta-se que Galdino Machado, que fora buscar a bola
onze vezes em suas redes, mandou imprimir um cartão de visitas com as palavras:
"Machado, o goleiro que tomou 11 gols do Santos, 8 de Pelé". Não era
vergonha. Era currículo.
Outra
"vítima" foi o técnico Osvaldo Brandão, então no Botafogo. Gaúcho,
grande treinador de futebol, Brandão alimentava uma especial pinimba com o time
da Vila Belmiro. Rivalidade feita de vitórias e derrotas, como todas.
Ele
era técnico do Verdão no histórico Santos 7 x 6 Palmeiras de 1958, considerado
por especialistas o maior clássico de todos os tempos do Campeonato Paulista. O
jogo, com Pelé ainda menino, foi marcado por viradas, reviradas e reviravoltas
de arrepiar. Conta-se que alguns torcedores morreram de ataque cardíaco no
Estádio do Pacaembu. O Palmeiras abriu o marcador com Urias, Pelé empatou.
Pagão deu a vantagem ao Santos, Nardo igualou. Dorval, Pepe e Pagão
determinaram o placar do primeiro tempo, 5 a 2 para o Santos. O Palmeiras
voltou em fúria e marcou quatro vezes, com Mazzola, Paulinho, Urias e Ivan,
numa virada frenética: 6 a 5. Mas Pepe, famoso pela bomba de pé esquerdo,
determinou o placar final - com um improvável gol de pé direito e outro, raro,
de cabeça. 7 a 6. 13 gols. Jogo louco. Jogo de antologia.
Com
a lavada histórica em seu Botafogo, Brandão foi demitido. Voltou ao
Corinthians. E quis o destino que a estreia do treinador no Timão fosse justamente
contra...o Santos Futebol Clube. Outra partida de almanaque e outro placar
elástico: 7 a 4 para o alvinegro da Vila. Pelé anotou quatro gols e Coutinho,
três.
Na
matemática da gozação, Brandão havia tomado 18 gols do Santos em dois jogos
sucessivos - 11 pelo Botafogo, 7 pelo Corinthians. Por isso Coutinho, quando
avistava o técnico, o chamava jocosamente de "Dezoito" para se vingar
da piada racista (e impensável nos dias atuais) de Brandão, que havia apelidado
o centroavante do Santos de "Dezessete" - número do macaco no jogo do
bicho.
A
partida contra o Botafogo ficou gravada na memória dos boleiros do Santos.
Coutinho dedica várias páginas de sua autobiografia ao jogo. Pepe lamenta ter
marcado um belíssimo gol olímpico justamente na partida em que Pelé faria os
famosos oito gols, feito destinado a ofuscar qualquer outro. No andamento do
placar, diz o "canhão da Vila", goleada desenhada, todos os jogadores
passaram a colaborar com o "Negão", dando-lhe passes para aumentar ao
máximo o número de gols e estabelecer o seu recorde. Pepe sempre reconheceu que
quanto maior fosse a fama do principal jogador do elenco, melhor seria para
todos eles.
Quem
ficou confuso foi o funcionário do clube, encarregado de mexer no placar do
Estádio Urbano Caldeira. Naquele tempo sem placares eletrônicos, este consistia
em placas com números desenhados, que iam sendo trocadas à medida em que os
gols saíam. Acontece que o numeral em Urbano Caldeira ia apenas até o 10.
Quando veio o 11º gol, como registrar o resultado extravagante? O encarregado
pensou rápido e, no lugar da placa, colocou uma camisa reserva de Pepe, com o
número 11 estampado às costas. Mais uma vez, o impensável havia se
materializado na Vila e, diante dele, o jeito era improvisar.
A
falta de imagens desta partida famosa só fez alimentar a sua mitologia. Numa
época ainda primitiva do registro audiovisual esportivo, aconteceu o mesmo com
outras façanhas santistas. Há poucas imagens da famosa virada sobre o Milan no
Maracanã, por 4 a 2, quando até o intervalo o time era derrotado por 0 a 2. Não
há nada do gol considerado por Pelé o mais bonito de sua carreira, contra o
Juventus, na rua Javari. Nem do famoso "gol de placa" sobre o
Fluminense, também no velho Maraca. E por aí vai.
Sem
outros rastros, os 11 a 0 contra o Botafogo permaneceram indeléveis em nossa
memória afetiva de santistas. Consta no borderô do clube que 9.437
privilegiados pagaram ingresso para vê-los na Vila Belmiro. Outras centenas de
milhares de torcedores ouviram pelo rádio. A fama do jogo cresceu, como crescem
os mitos, e não existe santista que não tenha ouvido falar dele, mesmo os que
não eram nascidos na época. A partida era um monumento desaparecido na poeira
do tempo. Até agora, quando enfim podemos ver a série fotográfica que
imortaliza imagens dessa façanha histórica do alvinegro praiano e de seu
símbolo maior, Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, que, neste 24 de
outubro de 2020, completa 80 anos de vida e bem merece ganhar um presente como
esse.
Luiz
Zanin (Luiz Fernando Zanin Oricchio) é crítico de cinema e ex-colunista
esportivo de O Estado de S. Paulo. Santista desde pequenininho.
Livros
consultados
Coutinho,
o Gênio da Área, de Carlos Fernando Schinner. Editora Realejo, 2012
Bombas
de Alegria, de José Macia, Pepe. Editora Realejo, 2006
Almanaque
do Santos FC, de Guilherme Nascimento. Editora Magma, 2012
Time
dos Sonhos - História Completa do Santos F.C., de Odir Cunha. Editora Códex,
2003
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