Profissões
como açougueiro, vaqueiro, recreador e vendedor de artesanato não costumam ser
associadas ao setor público. No entanto, pelo menos 10 mil servidores no
Executivo federal, ou 2% do total de permanentes, ocupam cargos em funções como
essas, desde áreas obsoletas, como editor de videotape, até outras hoje
exercidas por terceirizados, como cozinheiros. As informações são da Folha de São Paulo.
Especialistas
afirmam que reestruturar carreiras do Estado é principal solução para evitar a
obsolescência, com servidores tendo atribuições menos específicas e capacidade
de atuar em diferentes órgãos públicos.
Adotar
esse modelo está nos planos de longo prazo do governo federal, de acordo com
José Celso Cardoso Jr., secretário de Gestão de Pessoas do MGI (Ministério da
Gestão e da Inovação em Serviços Públicos).
O
governo planeja reduzir as 250 tabelas de remuneração e os mais de 300
agrupamentos de carreiras no setor para um número mais "racional",
ainda a ser determinado.
Segundo
o secretário, a pasta deve publicar uma portaria neste mês com diretrizes para
nortear esse processo e buscar a aderência de órgãos e servidores ao longo do
mandato.
Cardoso
afirma que parte dessas diretrizes estão incorporadas no Concurso Nacional
Unificado, dividido em sete áreas do conhecimento. Funções que já são mais universais
e com vagas abertas, como analista de tecnologia da informação, devem abastecer
mais de um ministério.
"É
preciso fazer o que estamos chamando de racionalização do sistema, diminuindo o
número de carreiras e transformando cargos vagos e obsoletos em cargos com
atribuições mais amplas e modernas, para permitir a transversalidade e
mobilidade."
Hoje,
há um excesso de funcionários em cargos atípicos, como afinador de instrumentos
musicais e eletricista de espetáculo. Muitas dessas funções já deixaram de
existir por lei, embora ainda sejam ocupados por profissionais. É o caso dos
datilógrafos, cargo extinto em 2018, que ainda soma mais de 1,8 mil servidores.
Os
salários variam: um operador de máquina de lavanderia, por exemplo, pode ganhar
R$ 4.000, enquanto um recreador recebe cerca de R$ 7.000, segundo o portal da
transparência. Os dados sobre servidores são de dezembro de 2023 do Painel
Estatístico de Pessoal do governo federal.
Quando
um cargo deixa de existir, o servidor vai ocupar outro, com salário e
atribuições similares. Enquanto o processo de eliminação da função não termina,
é possível que os funcionários permaneçam na posição até que o último se
aposente, e aí a carreira deixa de existir.
É
o que ocorreu com Natanael Galvão, 60, contratado como açougueiro na UFRRJ
(Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) em 1985.
Ele
entrou como celetista, antes de os concursos serem obrigatórios. Trabalhou por
dez anos na cozinha do restaurante universitário e se tornou estatutário.
Quando
o restaurante passou à iniciativa privada, foi transferido para um açougue
associado ao curso de zootecnia, onde preparavam as carnes para o refeitório.
Em
2011, o açougue foi fechado, e a carreira de açougueiro havia sido extinta.
Natanael se tornou então auxiliar da área administrativa do restaurante,
responsável pelo controle de entrada dos alunos.
"Tive
que me readaptar, fazer alguns cursos, porque aqui nós mexemos com informática
e computador, que não tinham a ver com minha área."
Essas
ocupações são legado de uma época que a maior parte dos contratos no setor
público eram de regime jurídico único com direito à estabilidade, segundo
Humberto Martins, professor de gestão pública da FDC (Fundação Dom Cabral).
Parte
delas são anteriores à Constituição, que determinou a obrigatoriedade de passar
por concurso público para entrar no setor.
Um
terço dos 10 mil servidores trabalham em funções hoje ocupadas principalmente
por terceirizados ou temporários, como motoristas, trabalhadores de cozinha e
de limpeza.
Antes
da Constituição, contratos sem vínculo permanente eram menos comuns. O
documento determinou que funcionários temporários podem ser admitidos se houver
excepcional interesse público.
"A
atividade não precisa estar dentro da estrutura do setor. Mesmo que esteja,
pode ser exercida de outras formas de contratação que não aquela mais ligada ao
exercício das funções que requerem o poder do Estado, como policiais e
diplomatas", afirma Martins.
Para
ele, é provável que postos com atribuições muito particulares, como vaqueiro e
recreador, estejam ligados a projetos específicos dentro dos órgãos, por não
terem relação direta com políticas públicas, gestão ou outras áreas de apoio,
como limpeza e cozinha.
Uma
parte dessas profissões atípicas já passou por mudanças na gestão de pessoas da
administração pública, com cargos extintos, terceirizados ou retirados do
regime jurídico único. Reestruturar carreiras seria o próximo passo, segundo
especialistas.
De
acordo com Vera Monteiro, professora de direito administrativo da FGV (Fundação
Getúlio Vargas), adotar tal modelo em toda a gestão pública exigiria
uniformização de salário e benefícios, um desafio orçamentário para o Estado.
Ela
diz que, por outro lado, reestruturar cargos levaria a gestão pública a
concluir que muitas atividades não deveriam estar sob o regime jurídico único.
"Não
precisa acabar com a estabilidade para melhorar a gestão. Fazer um esforço para
saber quais carreiras estão obsoletas e poder desligar um servidor por falta de
desempenho já gera uma enorme melhora."
Segundo
o secretário José Cardoso Jr., equiparações remuneratórias já são um plano do
governo com orçamento previsto, uma vez que há defasagem salarial entre
servidores.
Até
novembro do ano passado, por exemplo, funcionários da ANM (Agência Nacional de
Mineração) tinham salário menor do que os de demais agências reguladoras,
quando a pasta firmou acordo de equiparação com os servidores.
Segundo
Humberto Martins, ter um número excessivo de servidores estatutários gera
problemas financeiros para o Estado. Esses profissionais podem ficar a vida
toda no setor, mas ocupando cargos que poderiam ser temporários ou estar sob
outras modalidades de contratação.
Além
disso, ele afirma que a gestão de pessoas do Estado se torna menos eficiente
quando há uma quantidade muito grande de profissionais para administrar.
O
secretário José Cardoso Jr. diz que a atual estrutura administrativa,
heterogênea e desigual, dificulta a criação de um ambiente de trabalho mais colaborativo
e o engajamento dos servidores em sua área de atuação.
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