(*) Luciano Feldens
Em operação policial recentemente deflagrada, o ministro do Supremo Tribunal
Federal Alexandre de Moraes determinou, entre outras medidas restritivas
impostas aos investigados, “a proibição de manter contato com os demais
investigados, inclusive por meio de advogados”. Parece pesar uma dúvida
sobre o real alcance da proibição: se ela afetaria os contatos entre o advogado
de um investigado e outro investigado – este na presença ou com o conhecimento
de seu advogado, pressupõe-se, em razão da ética profissional – ou se, além
disso, atingiria contatos dos próprios advogados entre si. Seja como for, a
diferença é apenas de intensidade: a limitação judicial não tem base legal,
contraria a Constituição e desafia até mesmo o senso prático das coisas.
O quadro geral
Para termos uma dimensão das consequências dessa decisão, proponho abandonarmos
o caso concreto – um caso que por todas suas nuances se apresenta, de A a Z,
como uma situação que coloca à prova os limites do sistema, senão o próprio
sistema – e projetarmos a aplicabilidade desse modelo decisório ao universo dos
casos criminais, balizando a ação dos mais de 13 mil juízes brasileiros
(considerando que o precedente vem do STF, não é desconsiderável que isso venha
a ocorrer, logo ali na frente). Se o panorama assusta, não podemos, professores
e advogados, nos demitir de nossas funções: devemos trazer o assunto à mesa,
jogar luz sobre esse modelo decisório, escrutinar seus fundamentos e perquirir
sobre a fonte do poder do qual emana.
Do
ponto de vista prático, a replicação desse modelo de limitação judicial da
atividade profissional criaria complicações que iriam desde sua
operacionalidade até sua inocuidade. Afinal, agora o Estado passaria a
monitorar o convívio profissional (em escritórios, antessalas de audiências ou
tribunais) ou mesmo social (almoços, jantares, congressos) dos advogados? O
investigado X, casuisticamente médico do advogado do investigado Y, poderá
seguir tratando-o? E como se obedeceria a proibição na situação de dois ou mais
investigados (por exemplo, pai e filho) representados pelo mesmo advogado?
Nesta hipótese, a restrição ainda produziria uma desigualdade processual entre
investigados que possuem uma representação profissional comum e aqueles que não
a têm: a restrição pesaria apenas sobre parte dos investigados.
Direito de defesa
Mas, ainda que desconsideradas essas questões nada irrelevantes, é no ambiente
jurídico onde os problemas se acentuam. E eles são diversos. Primeiro, porque
desde o momento em que encilhamos o Leviatã, optando pelo caminho da
civilização, fixamos que o poder não é absoluto. E que esse poder – agora
dividido – estaria limitado, essencialmente, pelos direitos individuais.
Segundo, porque em matéria penal eventuais restrições a direitos e a correlatas
prerrogativas profissionais são matérias reservadas à lei; não podem ser
criadas judicialmente. E terceiro, porque lei com esse propósito, que até então
não existe, apenas poderia ser editada com respeito ao conteúdo elementar dos
direitos e garantias fundamentais implicados.
Neste
momento, precisamos convidar para entrar em cena o direito de defesa, de cuja
essência se deriva, entre tantos outros, o legítimo direito de investigados e
advogados de silenciarem diante do Estado, de comunicarem-se reservadamente –
ou seja, longe dos ouvidos das autoridades – e, em sendo o caso, de alinhar uma
estratégia de resistência à ação persecutória do Estado, no que
designamos direito de estratégia, um corolário da liberdade a da
independência profissional legal e constitucionalmente asseguradas ao
advogado [1].
A
advocacia é atividade com significativo nível de regulação. Observadas as
normas de orientação do exercício profissional (Constituição, Estatuto e Código
de Ética), a defesa está autorizada a desenvolver em juízo – ou perante o órgão
de investigação – uma atuação estratégica. Eventual postura de oposição
pacífica e discreta à ação muitas vezes ostensiva e surpreendente (e até mesmo
violenta) do Estado talvez venha a ser, naquele momento, o conteúdo mínimo de
uma defesa em face de um Estado que não é pequeno, que não é dócil, que detém o
monopólio da força e que se apresenta, no contexto de “operações policiais”, na
fisionomia de diversas instituições investidas de poder, muitas vezes unidas
em forças-tarefa.
O poder extralegal dos juízes
Abramos nossos olhos: ao aceitarmos a difusão desse modelo decisório, estaremos
dando um largo passo para que se passe a considerar movimentos defensivos dessa
natureza como “embaraço” da investigação – logo, crime de obstrução de Justiça,
tipificado em lei. Será fundamental que o STF se manifeste a respeito, como já
prenunciara que assim ocorreria o ministro Gilmar Mendes (STF – HC 141.478-MC,
relator: ministro Gilmar Mendes, j. 5/4/2017), oportunidade em que o tribunal
poderá reafirmar: “compreende-se no direito de defesa estabelecerem os
corréus estratégias de defesa” (STF – HC 86.864 MC, relator: ministro
Carlos Velloso, j. 20/10/2005).
Sob
a perspectiva da percepção da sociedade, é bem possível que não haja consenso
acerca do perímetro da liberdade de ação dos advogados, alguma ou outra vez
figurados como meros entraves ao poder penal do Estado. Descontado o adjetivo,
e o preconceito que o cultiva, é isso mesmo o que devemos ser diante do abuso
de poder. Do contrário, seremos substituídos por um critério de eficiência
diretamente associado ao incremento do poder extralegal dos juízes, em relação
ao qual, a propósito, a sociedade também tem manifestado suas desconfianças.
Sobre
isso, ainda valeria uma palavra final: é inegável que uma maior restrição de
direitos representaria um ganho estatístico de condenações criminais. No
exemplo limite da tortura, física ou moral, ninguém duvidaria que pessoas
sujeitas a tais circunstâncias estariam mais suscetíveis de confessar a prática
de crimes, mesmo que não os tenham cometido – assim como pessoas desassistidas
juridicamente estão mais sujeitas ao infortúnio em julgamentos criminais (aqui,
uma breve lembrança dos pobres de tão pretos e pretos de tão
pobres [2]).
Ocorre que em similar proporção estaríamos elevando o índice de condenações não
apenas injustas, mas degradantes à condição humana.
O
ponto está aqui: ou reconhecemos o investigado como sujeito de direitos e a
advocacia como função essencial à Justiça, na exata configuração que lhes dão a
Constituição e a lei, ou passaremos gradativamente a ceder ao avanço de um
poder penal extralegal, ditado a golpes de sentença, oferecendo contexto de
realidade à hipótese daquela famosa produção hollywoodiana: “Afinal, o que
significam 10 mil advogados acorrentados no fundo do mar?”. E o
interlocutor responde: “um bom começo”.
[1] FELDENS,
Luciano. O Direito de Defesa – A Tutela Jurídica da Liberdade na
Perspectiva da Defesa Penal Efetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 4ª ed.
2024, pp. 179-183.
[2] Expressão contextual e simbolicamente utilizada por Reinaldo Azevedo, em comentário crítico à execução de políticas de segurança que acabam apontando sua ação a grupos vulneráveis (reinaldoazevedo.blogosfera.uol.com.br/2019/08/13/0-e-da-coisa). Adaptação, também, da letra de Haiti, de Caetano Veloso.
Fonte: Artigo publicado, originalmente, na revista eletrônica Conjur
https://www.conjur.com.br/2024-fev-11/os-advogados-e-o-poder-extralegal-dos-juizes/
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