O Supremo Tribunal Federal (STF) está próximo de aprovar a descriminalização do porte de maconha para consumo. Cinco ministros se posicionaram a favor da medida, sendo necessário mais um voto para que ela entre em vigor.
O
ministro Luís Roberto Barroso, presidente da Corte, marcou a retomada do
julgamento para quarta-feira (6/3).
A
Corte também caminha para fixar parâmetros objetivos de quantidade de maconha
para diferenciar quem seria usuário ou traficante, o que, na visão de
defensores da medida, pode reduzir o que seriam prisões equivocadas por tráfico
no país.
Por
enquanto, estão a favor da descriminalização do porte para consumo Gilmar
Mendes (relator da ação), Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de
Moraes e a ex-ministra Rosa Weber.
Eles
argumentaram que o uso da maconha é uma questão de liberdade individual e deve
ser combatido com campanhas de informação e atendimento focado na saúde dos
usuários.
“A
criminalização da conduta de portar drogas para consumo pessoal é
desproporcional”, argumentou Weber.
Votou
contra a descriminalização o ministro Cristiano Zanin, nomeado para a Corte
pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. Isso gerou revolta nas redes sociais
de progressistas que apoiaram a eleição do petista.
Isso
dependerá de outros elementos que corroborem para o crime de tráfico, como
apreensão de armas ou balança para pesar drogas, por exemplo.
Fachin,
quando votou em 2015, foi contra a adoção de critérios pelo STF, pois
considerou que seria função do Congresso definir essa quantidade. Mas ele ainda
pode revisar seu voto, como fez Mendes, que também havia ficado contra a
fixação de parâmetros no início do julgamento.
'Não
haverá soltura automática de presos'
Há
mais de 180 mil pessoas presas hoje no país por tráfico de drogas. A quantidade
de presos que seria eventualmente beneficiada por uma decisão neste julgamento
dependerá de a maioria do STF concordar com a fixação de parâmetros que
diferenciem consumo e tráfico e de quais seriam os parâmetros adotados.
No
entanto, nenhuma decisão do Supremo levaria a uma liberação automática de
presos, explica a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen à BBC
News Brasil.
Cada
pessoa detida pelo crime de tráfico de drogas e potencialmente impactada pelo
julgamento, ressalta, teria que apresentar um recurso à Justiça solicitando a
revisão de sua pena.
“Se
o Supremo decidir que até determinada quantidade não é tráfico de drogas, o que
vai acontecer é que, nos casos em que houver pequena quantidade (de droga
apreendida), as defesas vão arguir que aquilo não seria crime. E isso vai ser
analisado caso a caso. Então, será um impacto de médio prazo”, afirma.
“O
efeito mais imediato é que pessoas com pequenas quantidades não seriam mais
presas e processadas, se não estiverem presentes outros elementos que denotem
tráfico, como por exemplo, anotações de contabilidade (da venda de drogas), a
balança (usada para pesar a droga vendida), o dinheiro, a arma, a munição”,
acrescenta.
Uma
fixação de parâmetros nas condições propostas por Barroso é apoiada também pela
associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF).
A
instituição não se posiciona a favor ou contra a descriminalização do porte
para consumo, mas defende que, independentemente do que for decidido nesse
ponto, o Supremo estabeleça parâmetros para diferenciar o usuário do
traficante.
Segundo
Davi Ory, advogado que representa a associação, a APCF avalia que “o principal
fator para o aumento do encarceramento foi a adoção de critérios subjetivos
demasiadamente amplos e que transferiram à estrutura do Poder Judiciário o ônus
de definição de quem seria usuário e traficante tendo por base ‘as
circunstâncias sociais e pessoais’, bem como o ‘local e condições em que se
desenvolveu a ação’”.
Isso,
ressalta, estaria gerando prisões indevidas, principalmente, de pessoas negras
e pobres.
Já
o advogado Cid Vieira, que representa a Federação Amor Exigente no julgamento
do STF, questiona o impacto do julgamento na redução dos presos.
A
organização, que atua como apoio e orientação aos familiares de dependentes
químicos, foi uma das instituições aceitas pelo Supremo para atuar no
julgamento como amicus curiae (colaborador da Justiça que detém algum
interesse social no caso mas não está vinculado diretamente ao resultado).
“Eu
não tenho notícia que dependente químico esteja preso. O artigo 28 da atual
legislação de drogas não prevê a prisão daqueles que sejam surpreendidos com
posse de droga para consumo pessoal. É uma colocação que não existe. Não é sob
esse aspecto que as prisões vão estar mais lotadas ou não”, afirmou Vieira, que
conversou em maio com a BBC News Brasil.
Presos
por tráfico são mais de 25% da população carcerária
Estudos
indicam, no entanto, que a atual Lei de Drogas, sancionada em 2006 por Lula,
contribuiu para o aumento do número de pessoas presas por crimes relacionados
ao tráfico de drogas.
Essa
lei acabou com a pena de prisão para usuários e aumentou a punição para
traficantes. A expectativa era que isso reduziria o número de prisões, mas o
efeito foi o oposto, afirma o advogado Pierpaolo Bottini, que era secretário de
Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça naquela época.
“A
impressão que se tinha é que isso ia desencarcerar, porque as pessoas que estavam
presas por uso iam sair (da prisão). Mas acabou aumentando o encarceramento
porque justamente as autoridades policiais acabaram jogando tudo para o
tráfico, então acabou tendo efeito absolutamente inverso”, disse em entrevista
à BBC News Brasil em maio de 2023.
Segundo
dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, órgão do Ministério da
Justiça e Segurança Pública, quase 28% da população carcerária no país está
presa por crimes previstos na Lei de Drogas.
No
caso das prisões estaduais, por exemplo, onde havia um total de 659.351 pessoas
detidas provisoriamente ou condenadas no primeiro semestres de 2022 (dado mais
recente), 182.958 estavam presas por esse tipo de delito, 27,75% do total.
Um
estudo de 2023 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que analisou
uma amostra dos processos julgados na primeira instância judicial de todo o
país no primeiro semestre de 2019, estimou que 58,7% dos réus que respondiam
por tráfico de maconha portavam até 150 gramas. E apenas 11,1% levavam mais de
dois quilos da droga.
Uma
análise semelhante dos réus em processos por tráfico de cocaína identificou que
62,3% dos processos se referem a 100 gramas ou menos, enquanto 6,8% dos casos
tratavam de apreensões de mais de um quilo.
Limite
de 25 gramas poderia impactar 27% dos condenados por tráfico de maconha, estima
Ipea
Esse
mesmo estudo estimou quantas pessoas condenadas por tráfico de maconha ou
cocaína poderiam ter sua pena revista caso fossem fixadas quantidades máximas
de porte para consumo dessas drogas.
Foram
analisados processos de 5.121 réus por tráfico de drogas julgados na primeira
instância judicial no primeiro semestre de 2019, uma amostra representativa do
total de pessoas presas por esse crime no país.
A
conclusão do estudo do Ipea foi que se o parâmetro proposto por Barroso (25
gramas de maconha) fosse adotado, por exemplo, 27% dos condenados por tráfico
de maconha poderiam ter sua pena revista.
Se
fosse adotada uma quantidade de 40 gramas de limite para consumo, 33% dos
condenados poderiam ser impactados.
Por
outro lado, se o parâmetro fosse fixado em 100 gramas, quase metade (48% dos
condenados) poderia ter a revisão de pena.
Os
cenários testados pelo Ipea levaram em conta três opções de parâmetros propostos
em uma nota técnica do Instituto Igarapé, de 2015, que analisou pesquisas sobre
uso de drogas no Brasil e experiências internacionais de fixação de quantidades
para diferenciar tráfico e consumo.
No
caso da cocaína, 31% dos condenados por tráficos poderiam ter sua pena revista
caso o STF fixasse um parâmetro de 10 gramas para consumo. Se a quantidade
limite fosse de 15 gramas, o percentual subiria para 37%.
“Os
cenários acima constituem um exercício interpretativo para projetar o alcance
de referidos parâmetros exclusivamente aplicados à quantidade de drogas, mas
somente a análise dos casos concretos permitiria a reclassificação da conduta
como consumo pessoal”, ressalta o estudo.
As
conclusões desse estudo, no entanto, não permitem calcular o potencial de
presos que poderiam ser soltos caso o STF adote parâmetros para diferenciar
tráfico e consumo, pois nem todos os réus processados por tráfico de drogas são
condenados a regime fechado ou semiaberto, explicou a BBC News Brasil a
coordenadora da pesquisa, Milena Karla Soares.
“Estamos
fazendo um novo estudo para analisar especificamente qual seria o impacto no
sistema prisional”, disse.
Soares
ressalta que um elemento que dificulta essas análises é a falta de padronização
do registro das quantidades apreendidas nos processos criminais.
Para
identificar as quantidades apreendida com cada réu, a equipe do Ipea pesquisou
diversos documentos processuais, como laudos periciais, denúncias do Ministério
Pública e as sentenças dos juízes. Foi selecionada, então, “a melhor informação
disponível” nesses vários documentos, em cada caso, para realizar o estudo.
Por
isso, uma das recomendações da pesquisa é “o estabelecimento de um protocolo
nacional para padronização das informações de natureza e de quantidade de drogas
nos processos criminais”.
Entenda
melhor a ação em julgamento
O
STF está analisando um Recurso Extraordinário com repercussão geral (cuja
decisão valerá para todos os casos semelhantes) que questiona se o artigo 28 da
Lei de Drogas é inconstitucional.
Esse
artigo prevê que é crime adquirir, guardar ou transportar droga para consumo
pessoal, assim como cultivar plantas com essa finalidade.
Não
há previsão de prisão para esse crime. As penas previstas nesse caso são
“advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade”
e/ou “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
O
recurso foi movido pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu pego
com 3 gramas de maconha na prisão. Pela posse da droga, ele foi condenado a
prestar serviços comunitários. A Defensoria argumenta que a lei fere o direito
à liberdade, à privacidade, e à autolesão (direito do indivíduo de tomar
atitudes que prejudiquem apenas a si mesmo), garantidos na Constituição
Federal.
“Por
ser praticamente inerente à natureza humana, não nos parece o mais sensato
buscar a solução ou o gerenciamento de danos do consumo de drogas através do
direito penal, por meio de proibição e repressão. Experiências proibitivas
trágicas já aconteceram no passado, como o caso da Lei Seca norte-americana e
mesmo a atual política de guerra às drogas, que criou mais mazelas e
desigualdades do que efetivamente protegeu o mundo de substâncias
entorpecentes”, argumentou o defensor Rafael Muneratt, ao sustentar no início
do julgamento.
Já
o então chefe do Ministério Público em São Paulo, o procurador-geral Márcio
Fernando Elias Rosa, se manifestou contra a descriminalização.
"O
tráfico no Brasil apresenta índices crescentes. O Estado não se mostra capaz
nem sequer do controle efetivo da circulação das chamadas drogas lícitas. Não
há estruturada rede de atenção à saúde ou programa efetivo de reinserção
social", sustentou.
“A
descriminalização, ainda que parcial das drogas, poderá contribuir com o
agravamento deste problema de saúde", argumentou.
O
julgamento, iniciado em 2015, foi uspenso pela segunda vez no dia 24 de agosto
de 2023, após o ministro André Mendonça pedir vista (mais tempo para analisar o
caso). Além dele, faltam votar Nunes marques, Luiz Fux, Dias Toffoli e Cármen
Lúcia.
A
ação não trata da venda de drogas, que continuará ilegal qualquer que seja o
resultado. O crime de porte para consumo já não é punido com pena de prisão no
país desde 2006, com a sanção da atual Lei de Drogas.
Caso
a descriminalização seja aprovada no STF, a pessoa que portar entorpecentes
para consumo próprio não poderá mais ser submetida a outras punições atualmente
em vigor, como prestação de serviços à comunidade ou comparecimento a programa
ou curso educativo, nem terá um registro na sua ficha criminal.
Apesar
disso, estudiosos do tema afirmam que esse julgamento pode ter o impacto de
reduzir o número de pessoas presas no país, caso a decisão do STF permita
libertar pessoas que estariam, ao seu ver, erroneamente encarceradas por
tráfico de drogas.
Para
que isso ocorra, dizem, seria necessário que a Corte estabelecesse parâmetros
objetivos para diferenciar qual a quantidade de droga deve ser considerada
voltada para consumo e qual deve ser enquadrada como tráfico.
Defensores
da medida, como a associação que representa os peritos da Polícia Federal
(APCF) e integrantes da Procuradoria-Geral da República, afirmam que a falta de
parâmetros objetivos para que policiais, promotores e juízes diferenciem o
consumo da venda faz com que muitas pessoas detidas no país com pequenas
quantidades de maconha, por exemplo, acabem presas pelo crime de tráfico.
No
entanto, há organizações que estão participando do processo que duvidam deste
efeito porque discordam da avaliação de que pessoas estejam sendo presas por
tráfico equivocadamente.
Por
enquanto, cinco ministros se manifestaram a favor da adoção desses parâmetros:
Barroso, Moraes, Weber, Mendes e Zanin. A quantidade, porém, só será definida
ao final do julgamento, caso haja maioria a favor da medida.
Barroso
e Weber, por exemplo, propuseram 100 gramas de maconha como um corte para
diferenciar usuário e traficante. A quantidade segue parâmetros usados em
outros países, como Espanha e Holanda.
Já
Moraes e Mendes sugeriram 60 gramas, enquanto Zanin defendeu apenas 25 gramas.
Os
ministros também discutem fixar uma quantidade máxima de pés de maconha para um
usuário cultivar.
Os
ministros ressaltaram, porém, que eventuais parâmetros a serem adotados
serviriam como uma referência básica, podendo o juiz considerar o indivíduo
como usuário, mesmo que esteja com quantidade maior, ou ainda enquadrá-lo como
traficante, mesmo que tenha quantidade menor.
Fonte: BBC News Brasil
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