Se
ainda era possível notar algum suspiro de articulação política do governo para
fazer valer sua agenda no Congresso, agora não resta dúvida: está confirmada
sua escandalosa incapacidade de lidar com parlamentares sem que precise lançar
mão da farta distribuição de verbas do Orçamento. É o que se conclui da
velocidade e do volume da destinação de recursos não obrigatórios do Ministério
da Saúde para atender congressistas. Conforme mostrou o Estadão, dos R$ 21
bilhões em recursos não obrigatórios liberados neste ano, nada menos que R$
12,8 bilhões se destinaram a emendas individuais (indicadas por deputados e
senadores) e emendas de bancada (indicadas pelo conjunto de parlamentares de
cada Estado). Não se trata, porém, da única conclusão diante da fartura. Esse
vale-tudo – ainda que não seja ilegal nem surpreendente – se mostra
politicamente questionável e moralmente duvidoso, além de ser inaceitável numa
área repleta de carências impostas a quem precisa do Estado para cuidar da
saúde.
Responsável
pela articulação política do governo e, como tal, liberador-oficial de emendas
parlamentares, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, ainda
se gabou do triunfo orçamentário, como sinal de compromisso com o Congresso:
“Estamos fechando o dia de hoje, 30 de abril, com um recorde de publicação de
empenhos de emendas parlamentares. Ultrapassamos R$ 14 bilhões. (...) O
Ministério da Saúde foi o campeão nesse empenho”, disse o ministro, em
referência ao fatídico dia em que quase R$ 5 bilhões foram liberados, feito que
ajudou a alcançar o mencionado recorde. Resta refletir os termos, o custo e as
consequências desse compromisso. Longe de configurar a eficiência de gestão de
que se jactou Padilha, tratou-se de um flagrante agrado a parlamentares
queixosos que, sob a liderança do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
haviam emparedado o governo.
Padilha,
o Ministério da Saúde e a ministra Nísia Trindade têm estado no epicentro da
crise de relacionamento entre o Congresso e o governo. Deflagrou-se um tiroteio
contra Nísia, motivado menos pela preocupação com a saúde pública e muito mais
pelo represamento de verbas parlamentares atreladas aos recursos da pasta.
Apesar dos vícios de origem, os ataques ajudaram a descortinar malfeitos, entre
os quais problemas na gestão dos hospitais federais no Rio de Janeiro,
deficiências no enfrentamento da dengue e inépcia diante da emergência
sanitária do povo yanomami. A chantagem explícita já surtira algum efeito: como
também revelou o Estadão em abril, R$ 8,2 bilhões foram repassados a
Estados e municípios em 2023 fora dos controles republicanos. São recursos que
seguem direto do caixa da União para prefeituras e governos estaduais, sem
muito controle externo. Mais grave: alguns entes agraciados com repasses milionários
não tinham sequer capacidade material para dispor de tanto dinheiro, enquanto
outros ficaram sem recursos, evidência de que critérios técnicos foram
substituídos pela conveniência política.
Nada
haveria de errado, nos repasses de 2023 ou na distribuição de recursos deste
ano, se o dinheiro tivesse chegado aos seus destinos para viabilizar projetos
bem planejados e implementados. Também seria legítimo se o manejo do Orçamento
federal se desse com base em genuíno diálogo político entre Executivo e Legislativo,
no respeito às relações federativas e, sobretudo, se fosse controlado,
executado e fiscalizado de forma técnica e transparente. Não é o caso.
Não
se ignora aqui que boa parte dos problemas que regem as relações entre o
Executivo e o Legislativo é anterior ao atual governo. Lula precisa lidar tanto
com uma base parlamentar frágil como também com as prerrogativas de
congressistas sobre o Orçamento, que tornam refém qualquer presidente da
República. Negociar apoio, nessas condições, requer um esforço que vai além do
convencimento sobre boas políticas. O problema é de outra ordem: é a liberação
desorganizada, sem critérios e nada transparente, das emendas parlamentares, o
mau uso de uma área sensível para obter dividendos políticos e o indefensável
toma lá dá cá à custa da saúde da população. Nenhum governo pode se gabar
disso.
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