Senti
vontade de dizer ao Guaíba como Fernando Pessoa disse ao mar das Grandes
Navegações: Quanto de tuas águas são lágrimas do Rio Grande do Sul!
Era
madrugada de domingo 5 de maio em Porto Alegre. Fui acordado por novas
trovoadas que antecederam a forte chuva que sobreveio. Olhei para o relógio.
Quatro horas da manhã. Levantei-me para verificar se a casa estava bem vedada e
pus-me a pensar sobre o sofrimento de tantos gaúchos neste que é o quarto
desastre climático que se abate sobre o Rio Grande do Sul em menos de 12 meses
e é o maior de sua história.
Impiedosa,
prosseguia a chuva no que parecia um líquido e aéreo bombardeio. Vem daquelas
reflexões noturnas o conteúdo deste artigo.
O
fotogênico Guaíba – que sempre foi rio, mas era um estuário e modernamente,
juram os geólogos, é um lago – em complô com os cinco rios que a ele
contribuem, expandiu seus domínios sobre todos os baixos rurais e urbanos no
seu entorno.
Penso
sobre o Estado e o tal “poder público” – tão pouco público! De modo
sistemático, ao longo de décadas e em todo o país, o dinheiro da sociedade,
pagadora das contas, vem sendo usado, preferencialmente, para robustecer a
máquina e para os projetos de poder político (quando não, também, “otras
cositas mas”). Já pensaram o montante a que chegaríamos capitalizando apenas
20% disso ao longo de décadas? Como resultado, a potência do poder público se
dissipa em si mesmo e ele fica sem meios para atender suas atividades fins. O
resultado se expressa em ações insuficientes, obras raras e “baratas”, tecnicamente
modestas e frágeis. O dinheiro é escassíssimo até para prevenir, inspecionar e
conservar o que já se tem, mas para o núcleo da máquina, não.
Seria
impossível não escrever sobre a tragédia que se estendeu por todo o Rio Grande
do Sul. Até agora, 340 de seus 497 municípios são vitimados por ela. Nesta
manhã de segunda-feira 6 de maio, contam-se 83 mortos, 101 desaparecidos, 120
mil pessoas desalojadas de suas moradias. Porto Alegre inundada numa proporção
e extensão simplesmente inimaginável. As cenas exibidas pelos noticiários
parecem captadas de alguma distopia barrenta.
Vivo
aqui desde 1959, ou seja, cheguei quando passavam 18 anos da maior enchente já
registrada, a de 1941. Nela, o Guaíba, esplêndido lago que abraça Porto Alegre,
alcançou a cota de 4,75 metros. Alguns prédios do centro da cidade tinham na
parede a marca do nível então alcançado pelas águas.
No
início dos anos 70, como arquiteto, participei do projeto de um porto, no Rio
Taquari, cujo cais ficava a poucos metros da rodovia que hoje aparece submersa.
Prolongados estudos de hidrologia foram feitos sobre uma possível repetição da
enchente de 1941, que tangenciaria o nível das instalações portuárias que
projetávamos. Conclusão: aquela enchente teria um período de recorrência de cem
anos. Ou seja, havia a possibilidade de que uma enchente, por século, atingisse
o cais do porto que estudávamos. Provou-se bem ajustado o trabalho dos nossos
peritos de então: transcorreram 83 anos até que esta nova enchente atingisse e
derrubasse a marca de 1941 – lamentavelmente para ultrapassá-la em mais de meio
metro.
No
bairro onde moro, estamos numa cota bem superior à da área de inundação. Mas,
como a maior parte da cidade, estamos e estaremos nos próximos dias vivendo o
drama comum e fazendo a experiência dos camelos, sem água tratada para qualquer
aproveitamento humano.
Acima
da imprudência no gasto do Estado, acima da imprudência das ocupações
ribeirinhas, acima dos erros de engenharia, acima de quatro tragédias de origem
climática em menos de 12 meses, ergue-se, gigantesca, a solidariedade. Em
comovente mobilização, o Rio Grande inteiro, o Brasil e os países vizinhos
acorreram para a atenção às vítimas. As benditas redes sociais, essas mesmas
que tanta indignação causam aos espíritos que apreciam o povo silencioso, têm
sido instrumento importante para levedar e ampliar a extensão da solidariedade
que mobiliza a todos em torno do drama gaúcho.
Há
uma multidão silenciosa que gostaria de repercutir seu agradecimento e pede
orações e apoio para reconstrução de suas vidas.
(*)
Arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores,
colunista de dezenas de jornais e sites no país. Membro da Academia
Rio-Grandense de Letras. Escreve, semanalmente, artigos para vários jornais do
Rio Grande do Sul, entre eles Zero Hora, além de escrever o seu próprio blog e
em outros websites de expressão nacional, a exemplo do Mídia Sem Máscara,
Diário do Poder, Tribuna da Internet. Sua coluna é reproduzida por mais de uma
centena de jornais.
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