É
da tradição do Direito brasileiro que, em regra, as áreas de preservação
permanente (APP) [1] são
não edificáveis, na medida em que são destinadas às funções de proteção do
solo, dos recursos hídricos e, também, das pessoas e propriedades, salvo nos
casos de utilidade pública, interesse social e intervenção de baixo impacto
ambiental.
Há,
todavia, situações em que a intervenção/ocupação dos espaços ocorreu antes de
seu reconhecimento legal como APP, tendo a ocupação se dado conforme a
legislação então aplicável. Exemplificativamente: (1) ocupação de APP
ripária anteriormente à edição da Lei nº 4.771/1965, (2) ocupação de APP de
restinga antes das Resoluções Conama 303/2002 (e (3) a ocupação de área previamente
à instituição de APP por lei estadual ou municipal, como é o caso, por exemplo,
dos costões rochosos no estado do Rio de Janeiro que se tornaram APPs com a
promulgação da Constituição Estadual de 1989 (artigo 268, III).
É
comum o questionamento judicial de tais ocupações anos após as suas
instalações, já sob a vigência de um novo regime legal. Em geral, busca-se a
reparação de “danos ambientais” que, em tese, foram causados pelas atividades
que se implantaram em áreas permitidas ao tempo de sua instalação que, no
entanto, tiveram o seu regime jurídico alterado.
A
questão é, essencialmente, de aplicação da lei no tempo e de respeito à
segurança jurídica e ao princípio da proteção da confiança legítima.
Aqui
não se está tratando da teoria do fato consumado em Direito Ambiental, o que
esbarraria no óbice da Súmula 613 do STJ (“Não se admite a aplicação da teoria
do fato consumado em tema de Direito Ambiental”). Não é disso que se cuida.
Aliás, nessas hipóteses em que foi respeitada a lei em vigor à época dos fatos,
não há que se falar em ilicitude da conduta, tampouco em danos ambientais.
Especialistas
Nessa
linha, José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala conceituam dano
ambiental como uma “lesão de interesses juridicamente protegidos” [2].
Os autores pontuam, ainda, que “se deve apreciar o limite da
tolerabilidade aceitável, para que, na ocorrência da intolerabilidade, venha
surgir a imputação ao agente que praticou a lesão. Sanchez entende da mesma
forma, argumentando que a tolerabilidade exclui a ilicitude e, em consequência,
não deriva responsabilidade civil” [3].
No
mesmo sentido, parece ser a posição de Lyssandro Norton Siqueira para quem os
danos ambientais decorrem “de atos antijurídicos, aos quais se aplica a responsabilidade
ambiental civil objetiva, prevista expressamente no art. 14º da Lei no
6.938/81” e se diferenciam dos impactos ambientais “decorrentes de atividades
empreendedoras praticadas em absoluta regularidade (atos lícitos)” [4].
De acordo com a doutrina, portanto, atos lícitos praticados de acordo com as leis em vigor não geram dano ambiental, não havendo de se falar em responsabilidade civil. Desse modo, como não há ato ilícito nem dano ambiental, seria impertinente cogitar da aplicação da Súmula 613 do STJ, que se destina a impedir a perpetuação de atos ilícitos com base na teoria do fato consumado ao longo do tempo.
Princípios
Feitos
esses esclarecimentos, passamos ao exame da questão colocada. É bem de ver que,
se por um lado, não há direito adquirido a poluir nem a degradar o meio
ambiente – o que não ocorre nos casos mencionados acima –, por outro lado, são
importantes para o Estado Democrático de Direito os princípios constitucionais
da irretroatividade das leis, da segurança jurídica e da proteção da confiança
legítima, assim como a proibição do venire contra factum proprium.
Contudo,
convém recordar que o princípio da irretroatividade só se aplica às situações
expressamente previstas na CRFB [5].
Assim, no campo das relações sociais, tal princípio só se aplica diante de
situações protegidas pelo ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa
julgada. A despeito de o ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa
julgada serem garantias importantes, são insuficientes para dar conta de um
universo de situações que devem ser protegidas sob o signo da segurança
jurídica [6],
notadamente de seu desdobramento, o princípio da proteção da confiança
legítima.
É
que, independentemente de a esfera de poder ser federal, estadual ou municipal,
nesses casos o poder público consentiu, ainda que por omissão ao longo dos
anos, com as construções em espaços sob regime jurídico de direito comum —
trata-se, pois, de atos lícitos. Não por outra razão, esse contexto gerou uma
legítima expectativa dos proprietários ao longo dos anos de que suas
construções estariam de acordo com as normas ambientais em vigor (como de fato
estavam).
Contradição e confiança
A
administração deve agir de forma previsível para não surpreender o cidadão com
mudanças bruscas de postura, gerando inquietação e insegurança sociais. E os
proprietários, nesses casos, são vítimas de flagrante contradição entre os
órgãos públicos, que divergem quanto à aplicação da lei.
Tais
situações indicam abuso de direito, na modalidade de venire contra factum
proprium. A respeito de situações análogas, vem se manifestando o Superior
Tribunal de Justiça, sempre (e invariavelmente) privilegiando os interesses do
administrado que, legitimamente, investiu na confiança gerada por conduta da
administração pública.
Com
efeito, consignou o STJ que “os princípios da segurança jurídica e da
boa-fé objetiva, bem como a vedação ao comportamento contraditório (venire
contra factum proprium), impedem que a Administração, após praticar atos em
determinado sentido, que criaram uma aparência de estabilidade das relações
jurídicas, venha adotar atos na direção contrária, com a vulneração de direito
que, em razão da anterior conduta administrativa e do longo período de tempo
transcorrido, já se acreditava incorporado ao patrimônio dos administrados” (Cf:
RMS 20.572/DF, rel. ministra Laurita Vaz, 5ª TURMA, julgado em 1/12/2009, DJe
15/12/2009) [7].
Quanto
ao princípio da segurança jurídica, Luís Roberto Barroso sustenta que o seu
significado implica: “1. a existência de instruções estatais dotadas de
poder e garantias, assim como sujeitas ao princípio da legalidade; 2. a
confiança nos atos do Poder Público, que poderão reger-se pela boa-fé e pela
razoabilidade; 3. a estabilidade das relações jurídicas, manifestada na
durabilidade das normas, na anterioridade das leis em relação aos fatos sobre
os quais incidem e na conservação de direitos em face da lei nova; 4. a
previsibilidade dos comportamentos, tanto os que devem ser seguidos como os que
devem ser suportados; 5. a igualdade na lei e perante a lei, inclusive com
soluções isonômicas para situações idênticas ou próximas” [8].
Sobre
o princípio da proteção da confiança legítima, Ingo Sarlet afirma que ele “impõe
ao Poder Público – inclusive (mas não exclusivamente) como exigência da boa-fé
nas relações com os particulares – o respeito pela confiança depositada pelos
indivíduos em relação a uma certa estabilidade e continuidade da ordem jurídica
como um todo e das relações jurídicas especificamente consideradas” [9].
A
segurança jurídica e a proteção da confiança legítima encerram comando
proibitivo ao poder público no sentido de não frustrar as legítimas
expectativas dos administrados, que não aja de modo ambíguo, contraditório, de
modo que gere insegurança; ao contrário, enuncia que ela aja de forma
previsível, contínua, de boa-fé, com razoabilidade e bom senso, pressupondo
continuidade e estabilidade nas relações jurídicas. Ora, construções lícitas
promovidas de acordo com as leis em vigor à época dos fatos, mesmo que
posteriormente o regime jurídico seja alterado para o de APP, devem ser
respeitadas, especialmente em se tratando de situação consolidada ao longo de
muitos anos. Assim se diz por que essas relações jurídicas se estabilizaram no
mundo do direito de forma contínua, sem que, no período, o poder público tenha
adotado medidas voltadas a considerar as construções ilegais. E isto provocou
uma previsibilidade no comportamento do poder público, gerando uma legítima
expectativa do particular de que a construção e a utilização do espaço estão em
conformidade com a legislação em vigor e com a proteção do meio ambiente.
Estabilidade,
previsibilidade e proporcionalidade
Há
ainda um derradeiro argumento: a aplicação do artigo 24 da Lei nº 13.655/2018 [10],
que incluiu dispositivos na Lindb. Com referência ainda que indireta aos “fatos
consumados”, o artigo 24 da Lindb obsta que ato, contrato, ajuste, processo ou
norma administrativa já plenamente constituídos sejam revisados em razão de
superveniente interpretação de norma em sentido diverso da orientação geral
vigente à época da produção do ato. A regra alcança os três Poderes e é
aplicável às diversas searas de revisão das atividades públicas, abarcando
qualquer tipo de análise [11].
Floriano
de Azevedo Marques e Rafael Veras atentam para os vetores de estabilidade,
previsibilidade e proporcionalidade no ordenamento jurídico, já sinalizando os
desafios dos Tribunais, sobretudo do STJ, na revisão de entendimentos já
consagrados: “A primeira será de referendar, em outros casos concretos que
vier a apreciar, entendimentos já consagrados por aquela corte, com fundamento
em dispositivos da nova Lindb. A segunda, de rever alguns de seus
posicionamentos à luz do novel diploma. E a terceira será a de conferir uma
interpretação de conceitos trazidos pela nova lei, que predicam de uma
integração interpretativa jurisprudencial” [12].
Assim,
por força dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança
legítima, do princípio da boa-fé objetiva e à vedação ao comportamento
contraditório (venire contra factum proprium), bem como pela aplicação do
artigo 24 da Lindb não é crível possa o poder público (Administração Pública ou
o Judiciário) determinar a demolição de construções que foram erguidas de forma
lícita, de acordo com as leis em vigor na época de sua construção.
Logicamente,
caso o poder público entenda essencial o reaproveitamento da área como APP,
tendo em vista políticas públicas de conservação ecológica (proteção de margens
de cursos d’água, corredores ecológicos etc.), sempre poderá fazê-lo, não
havendo impedimento quanto à aplicação do novo regime jurídico. Todavia, em
tais casos, cabe a indenização do proprietário ou posseiro da área em questão.
[1] Lei nº 12.651/2012, Artigos 4º e 6º
[2] José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo
Ayala, Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, 7ª ed.,
Revista dos Tribunais, São Paulo, 2015, p. 103.
[3] José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo
Ayala, Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, 7ª ed.,
Revista dos Tribunais, São Paulo, 2015, pp. 112-114.
[4] SIQUEIRA, Lyssandro Norton. «Os princípios de Direito
Ambiental e a compensação ambiental no Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC)». In: GOMES, Carla Amado (Coordenadora). Compensação
ecológica, serviços ambientais e protecção da biodiversidade. Lisboa, Instituto
de Ciências Jurídico-Políticas, Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa,
2014, pp. 196 – 218. No entanto, para corroborar a sua tese, o autor cita
entendimento da Prof. Carla Amado Gomes, que possui entendimento em sentido
contrário, na medida em que não diferencia impacto e dano.
[5] Cf. ADI-MC 605/DF – STF/ Tribunal Pleno – Rel. Min.
Celso de Mello- j. em 23/10/1991 – DJ 05/03/93, p. 02897.
[6] Neste sentido, cf: SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia
do Direito Fundamental à Segurança Jurídica: Dignidade da Pessoa Humana,
Direitos Fundamentais e Proibição de Retrocesso Social no Direito
Constitucional Brasileiro. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (org.). Constituição
e segurança jurídica: Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada.
Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum,
2004, pp. 85-129.
[7] Cf. também: REsp 47.015/SP, Rel. Ministro ADHEMAR
MACIEL, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/10/1997, DJ 09/12/1997, p. 64655
[8] BARROSO, Luís Roberto. “O começo da história. A nova
interpretação constitucional e o papel dos princípios no Direito brasileiro”.
In: Temas de Direito Constitucional, tomo III. Rio de Janeiro: Renovar,
2005, p. 133.
[9].SARLET, Ingo Wolfgang. “A Eficácia do Direito Fundamental
à Segurança Jurídica: Dignidade da Pessoa Humana, Direitos Fundamentais e
Proibição de Retrocesso Social no Direito Constitucional Brasileiro”. In:
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (org.). Constituição e segurança jurídica:
Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem
a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004, pp. 85-129)
[10] “Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa,
controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo
ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta
as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior
de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e
especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência
judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa
reiterada e de amplo conhecimento público.”
[11] Neste sentido: CÂMARA, Jacintho Arruda. “Art. 24 da Lindb.
Irretroatividade de nova orientação geral para anular decisões
administrativas”. Revista de Direito Administrativo, Edição Especial. Rio
de Janeiro: FGV, nov. 2018, p. 113-134.
[12] MARQUES, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Veras.
“A nova Lindb e o consequencialismo jurídico como mínimo essencial”. Revista
Consultor Jurídico, 18 de maio de 2018. Disponível em: (https://www.conjur.com.br/2018-mai-18/opiniao-lindb-quadrantes-consequencialismo-juridico).
Acesso em 10 jun 2019.
doutorando
em Direito Público, mestre em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade
de Coimbra (Portugal), especialista em Direito Ambiental, cacharel em direito
pela PUC-Rio, professor de Direito Administrativo e Ambiental da Esap,
ex-conselheiro do Conama e do Conema-RJ, ex-procurador-chefe do Instituto
Estadual do Ambiente-RJ, procurador do estado do Rio de Janeiro, sócio do
Departamento de Ambiental e Sustentabilidade do BCVL Advogados e autor do
livro A Simplificação no Direito Administrativo e Ambiental.
detentor
da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia,
professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados
Brasileiros.
Fonte: Artigo publicado, originalmente pelo Conjur
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