Por Carlos
Bocuhy Segundo
a Organização Mundial da Saúde, a poluição do ar ambiente (ao ar livre)
causou 4,2 milhões de mortes prematuras em todo
o mundo em 2019. A
OMS sugere dois caminhos para resolver o problema: adotar ou revisar e
implementar padrões nacionais de qualidade do ar, alinhados com as
diretrizes mais recentes da organização, e identificar e controlar as
fontes de poluição. Adotar
essas diretrizes no Brasil não é uma tarefa fácil. O Instituto Brasileiro de
Proteção Ambiental (Proam) tem enfrentado um longo caminho para
viabilizar essa implementação. Há
20 anos, em 2002, o Proam iniciava a coordenação do Programa Metrópoles
Saudáveis em parceria com Opas-OMS, que realizou um estudo comparativo sobre saúde ambiental, abrangendo
metrópoles como São Paulo, Belém, Curitiba, Cidade do México, Buenos Aires,
La Paz, Ciudad Juarez e El Paso, entre outras. A
busca por indicadores prioritários e saudáveis foi estabelecida no Termo de
Referência para Metrópoles Saudáveis (Proam/Opas 2007), que reconheceu a
poluição atmosférica como um dos principais problemas ambientais de saúde
pública. Segundo dados da Faculdade de Saúde Pública da USP, a metrópole de
São Paulo registrava cerca de 17.000 óbitos por ano devido à poluição
atmosférica. Os
avanços da epidemiologia ambiental sobre a poluição do ar ocorreram de forma
progressiva após a década de 1990, quando os avanços tecnológicos permitiram
maior precisão na definição de limites seguros para a saúde humana. No
Brasil, a resolução Conama 03/90 estabeleceu os Padrões de Qualidade do Ar
(PQAr), baseados na revisão científica dos padrões realizada pela OMS em
1987. Novos
valores indicadores de PQAr, mais protetivos, foram estabelecidos pela OMS em
2005. Em resposta, o Proam propôs, em 2008, a atualização dos PQAr para o
Estado de São Paulo, por meio do Conselho Estadual do Meio Ambiente de São
Paulo (Consema). Utilizamos a prerrogativa legal de estabelecer normas mais
protetivas que as nacionais, devido à morbidade que afetava não só a capital
do estado, mas também cidades do interior paulista, que sofriam com problemas
de saúde decorrentes da queima de cana-de-açúcar. Cinco
anos depois, com um inexplicável atraso de dois anos na gaveta do Executivo,
foi sancionado o Decreto nº 59.113, em 23 de abril de 2013. Novos padrões
entraram em vigor para o Estado de São Paulo, com metas, mas sem prazos
definidos. Atualmente, a norma se encontra na Meta Intermediária 2 (MI2),
conforme pode ser verificado no site da Cetesb. Também
em 2013, o Proam pressionou insistentemente o Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama) para revisar a resolução Conama 03/90 e atualizar os PQAr
em nível nacional. Os trabalhos no Conama, iniciados em 2013, duraram seis
anos devido a constantes obstruções de interesses econômicos e políticos
envolvidos, resultando finalmente na Resolução Conama 491/2018. O
resultado foi pífio. A obstrução do setor industrial e de alguns órgãos
ambientais estatais, que temiam ser responsabilizados pela falta de
implementação de padrões mais seguros, demonstrou que a Lei de Crimes
Ambientais é um pesadelo para os férteis terrenos da desconformidade
ambiental no Brasil. Nesse
cenário adverso, a sociedade civil alinhou-se ao Ministério Público, buscando
meios para reagir ao descalabro do resultado que já se desenhava no Conama,
que já apresentava baixa eficiência democrática. Não
resta sombra de dúvida de que, assim como os PQar necessitavam revisão por
defasagem científica, a composição do Conama merece revisão em função de sua
evidente deficiência democrática. Sobre
essa matéria já se manifestou o STF: “Cabe ao Poder Executivo, a partir das
premissas constitucionais que conformam os processos decisórios democráticos
e os direitos fundamentais de participação e procedimentais ambientais,
escolher o desenho institucional mais adequado. Não se afirma nesta decisão
constitucional qual a organização-procedimental a ser adotada, mas a marcação
da moldura democrática e dos direitos fundamentais a serem respeitados”. O
ilustre jurista José Affonso da Silva, durante Audiência Pública promovida
pelo Ministério Público Federal da 3ª Região em conjunto com o Proam, em
2018, sobre aspectos técnicos da revisão dos Padrões de Qualidade do Ar
(PQar) para o Brasil, assim se manifestou: “A
poluição do ar é a mais danosa das poluições, porque ela é expansiva. É
expansiva no sentido de que ela provoca a poluição de todos os demais
elementos da natureza... e especialmente porque ela provoca doenças
respiratórias que levam à morte, como ficamos sabendo através das
estatísticas de morte em consequência dessa poluição”. Na
mesma Audiência Pública, a então procuradora-geral da República Raquel
Dodge afirmou que “no centro desta Audiência Pública estão
em jogo dois bens essenciais à vida: a saúde e o meio ambiente. Com efeito,
qualquer regramento que não garanta a extensiva e eficaz proteção a esses
direitos não estará sob a guarda da nossa ordem constitucional”. O
impasse estava instalado. Em função da insuficiência protetiva, caracterizada
por metas sem prazos e valores elevados para episódios críticos de poluição,
a resolução foi aprovada sob protestos do próprio proponente, o Proam, em
conjunto com a bancada ambientalista do Conama, especialistas em controle de
poluição, do Ministério Público Federal e do Ministério da Saúde. No
período que antecedeu à judicialização da resolução do Conama no STF,
apelamos ao deputado Paulo Teixeira para que construíssemos uma lei do ar
para o Brasil. O Conama era evidentemente vulnerável aos interesses
econômicos e a situação poderia ser melhor equacionada por força de Lei.
Assim surgiu a Lei da Política Nacional da Qualidade do Ar, de 2 de maio de
2024, decorrente de um encontro fortuito nas escadas rolantes do Aeroporto de
Brasília. Em
que pese avançar na determinação do levantamento de fontes de poluição, lição
de casa que seguia abandonada pelos órgãos ambientais, a Lei remete ao Conama
a regulamentação técnica, ou seja, a armadilha antidemocrática continua. A
Resolução 491/2018 acabou objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) 6148, proposta pela Procuradoria-Geral da República. Julgada
em 5 de maio de 2022, o STF determinou que “no prazo de vinte e quatro meses
a contar da publicação do presente acórdão, o Conama edite nova resolução
sobre a matéria, a qual deverá levar em consideração: (i) as atuais
orientações da Organização Mundial da Saúde sobre os padrões adequados da
qualidade do ar; (ii) a realidade nacional e as peculiaridades locais; bem
como (iii) os primados da livre iniciativa, do desenvolvimento social, da
redução da pobreza e da promoção da saúde pública; (iv) por fim, decorrido o prazo
de vinte e quatro meses acima concedido, sem a edição de novo ato que
represente avanço material na política pública relacionada à qualidade do ar,
passarão a vigorar os parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial da
Saúde enquanto perdurar a omissão administrativa na edição da nova Resolução”. Dessa
forma, remeteu-se a tarefa novamente para o Conama, que continua a sofrer da
crônica insuficiência democrática ao abrigar formidável desequilíbrio de
forças entre interesses governamentais e econômicos em contraponto à minguada
representação das ONGs ambientais. O
Conama só deliberou sobre a matéria em 12 de junho de 2024. Novamente cedeu à
pressão dos órgãos ambientais e setores industriais que resistiam à adequação
tecnológica para redução de emissões. Manteve metas e prazos excessivamente
lenientes. |
Resolução
Conama 491/2018 revisada e aprovada em 12 de junho de 2024 – gráfico do anexo
I com observações sobre prazos do PROAM. Obs: o
PF representa o valor recomendado como seguro na revisão de 2021 da OMS. |
O
Padrão Intermediário 2 (PI-2) será aplicado nacionalmente de janeiro de 2005
até dezembro de 2032, admitindo para alguns poluentes como Material
Particulado MP10 o dobro do padrão seguro recomendado pela OMS -- e para
MP2,5 , o quádruplo, apesar de ser reconhecidamente carcinogênico. Os
padrões serão posteriores serão o Padrão Intermediário 3 (PI-3) até 2043;
PI-4 até 2048, quando finalmente será estabelecido prazo para atingimento do
Padrão Final, ou seja, o índice seguro à saúde ficará apenas para a metade do
século 21. Salve-se quem puder. Certamente
durante este período a OMS revisará novamente os PQar, como já fez em 1987,
2005 e 2021. Há
um incompreensível silêncio sobre este descalabro. É evidente a fragilidade
da norma que só atesta a incapacidade estatal de impulsionar novas
tecnologias e acordos setoriais, algo similar à falta de implementação da
Política Nacional de Resíduos Sólidos, que patina na capacidade estatal de
cobrar a economia circular. Nessa
lógica o mercado é o senhor da razão. Os valores orientadores para qualidade
do ar adotados no Brasil permanecem defasados, só que agora estão sendo
agravados no contexto das mudanças climáticas. Não
posso deixar de nominar aqui algumas das organizações e especialistas que
atuaram para avançar com os padrões de ar mais seguros para o Brasil, entre
estes o engenheiro Olímpio Alvarez, especialista em controle de emissões
veiculares; Paulo Saldiva, Alfesio Braga e Evangelina Vormitag, da área de
saúde pública; o jurista José Affonso da Silva; os procuradores regionais da
República Fátima de Souza Borghi e José Leônidas Bellém de Lima; e a
ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge, além de tantos outros que
demandavam a edição de uma norma que fosse, de fato, protetiva à saúde
pública. O
fato é que continuamos no impasse por ar limpo. A busca por justiça ambiental
só se concretizará com a implementação de políticas públicas firmes para a
redução de poluentes. Nessa
lacuna, o Brasil continua a orientar seu crescimento por meio de uma precária meta intermediária e PQar defasados. De
forma distorcida, há subterfúgio de utilizar padrões ambientais não seguros à
saúde como referência para novos licenciamentos ambientais. Assim, novos
empreendimentos já nascem poluentes e com protetividade insuficiente, a
exemplo da megausina termelétrica que se pretende instalar em Caçapava (SP),
cuja emissão equivale à carga poluidora de 6,5 milhões de veículos (em NOx),
em uma região que apresenta pontos de saturação em material particulado e
ozônio troposférico, conforme aponta parecer do Proam encaminhado à
Procuradoria da República de São José dos Campos. Essas
distorções estão desinformando a sociedade, permitindo estudos de
impacto ambiental inverídicos. Estamos deixando de implementar boa política
por ar limpo. Continuamos a viver um atentado contra a boa normativa
ambiental, com precários indicadores ambientais que deveriam ser priorizados
entre os elementos mais importantes e essenciais para garantir saudável
qualidade de vida para os brasileiros. Fonte: Artigo publicado pela Revista Carta Capital Não deixe de curtir nossa
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