Como
saber que este texto aqui é realmente da autoria de um ser humano? Eu sei,
porque o estou justamente escrevendo. Mas uma máquina também poderia ter
escrito essa frase. Ao que parece, hoje em dia essa insegurança é algo com que
vamos ter que viver.
A
diferença entre humano e máquina é um tema recorrente pelo menos desde a
Revolução Industrial – e, numa época em que robôs se referem a si mesmos como
"eu", ganha urgência máxima.
O
ser humano é substituível? Em determinados campos, com certeza. Mas quão longe
se quer – e pode – ir? Falando à Sociedade Australiana de Autores (ASA) sobre o
tema inteligência artificial (IA), o britânico-australiano Alan Baxter
manifestou sua opinião com eloquência.
"Num
mundo em que ainda tem gente limpando banheiros e trabalhando em minas, não
consigo acreditar que temos robôs fazendo a nossa arte e as nossas histórias.
Eu pensava que robôs eram para fazer os trabalhos de merda e permitir que mais
gente vá perseguir suas paixões."
"IA
é um carro roubado"
Questionada
"por que escreve?", a maioria das autoras e autores responde que é a
sua paixão. Trata-se do processo de escrever e o prazer que envolve; de
encontrar palavras que se relacionam com o mundo. A tradutora literária Claudia
Hamm, por exemplo, define assim: "O próprio fazer é a finalidade. Se nós
[escritores] não quiséssemos escrever, poderíamos viver uma vida bem menos
precária."
Tudo
bem, poderia-se dizer; quem quiser, que escreva, e a IA pode se encarregar do resto. Assunto encerrado? Nem de longe
para Hamm, que acaba de lançar a coletânea Automatensprache (Linguagem
maquinal), que aborda de diversos ângulos a geração artificial de textos.
Um
aspecto muito discutido é o direito autoral e seus desdobramentos éticos. Os
modelos de linguagem de grande escala (large language model, LLM) só funcionam
porque foram alimentados – de graça – com milhões de textos já existentes,
criados por humanos. Diversos autores de bestsellers já moveram processos por
isso.
Hamm
resume assim a questão: "A IA geradora de textos é um carro roubado. Você
pode se sentar nele e viajar, pode ir a Paris e se divertir. Mas não vai deixar
nunca de ser um automóvel roubado."
Hamm
vai além. Para ela, a linguagem maquinal sequer é uma linguagem no sentido
próprio da palavra. Como não há um "eu" que fale, falta
intencionalidade. "A IA não tem intenção comunicativa. Quando utilizamos a
linguagem, tentamos encontrar, enquanto seres humanos, uma expressão para um
mundo interior bem específico."
E
como a máquina é privada de mundo interior ou exterior, continua a tradutora,
não é capaz de fazer poesia, só de justapor combinações inusuais de palavras.
"Uma máquina não tem como fazer um autoenunciado, como se posicionar em
relação ao mundo."
"Um
navio a vapor nunca negou que é uma coisa"
A
questão da "verdade" é igualmente problemática. Basta lembrar das
"alucinações de inteligência artificial" – ou seja, informações
"inventadas" por geradores de texto. Ou, como formula mais
enfaticamente a escritora Nina George na antologia Automatensprache:
"Afirmativas
não procedentes e falsificações de fatos que transformam o vômito de texto num
informante menos confiável do que Putin, o [tabloide alemão] Bild e a
Wikipédia juntos – como um tio sabe-tudo enrustido, balbuciando, bêbado, a sua
verborreia sem graça."
O
problema, segundo Hamm, é que os LLMs são construídos para tornar
indistinguíveis humanos e máquina, para dar ao usuário a impressão de estar
falando com um parceiro inteligente. Inteligência artificial como substituto do
interlocutor humano é a grande diferença em relação a outras revoluções
técnicas do passado: "Nunca um navio a vapor negou que é uma coisa",
lembra a intelectual alemã.
Além
disso, a questão "de quem é a realidade que a IA reflete" não tem
sido examinada o suficiente. Cidadãos brancos, homens e bem situados estão
super-representados nas palavras publicadas online que servem de material de
treinamento para LLMs como o ChatGPT. Assim, o output final não tem como ser
diverso.
IA
nas editoras, universidades – e o clima
No
fim das contas, porém, a intenção do setor livreiro não é demonizar a
inteligência artificial, pois ela tem a sua utilidade. Faz parte do cotidiano
da editora Penguin Random House, por exemplo, usar ferramentas de IA como fonte
de inspiração, revela sua vice-presidente para Desenvolvimento Digital, Beate
Muschler.
"Não
publicamos conteúdos gerados por IA, mas não somos um espaço livre de IA. Nossa
abordagem é examinar as cadeias de produção e definir campos em que se pode
empregar as ferramentas de IA como parte do processo, lá onde não haja questões
críticas de direito autoral."
Os
funcionários da Penguin podem usar ferramentas de IA para gerar ideias, porém
os produtos finais – por exemplo, capas de livros – são sempre elaborados por
seres humanos. O mesmo se aplica a autoras e autores: não há problema em buscar
inspiração, mas o texto resultante tem que ser do próprio punho. "Temos
bem claro nos contratos: o criador, a criadora, assegura ter produzido, ele ou
ela própria, a obra."
A
situação nas escolas e universidades é semelhante: os discentes devem elaborar
seus próprios trabalhos, se ocupar do tema, se envolver em processos, senão não
há aprendizado, e o mundo emburrece – uma perspectiva nada positiva, alertam os
críticos da IA.
E
assim também eu avancei um tanto. Pesquisei, refleti, escrevi, me ocupei de mim
mesma e do mundo. E até protegi o clima, pois LLMs e outros recursos de
inteligência artificial consomem enorme volume de energia – um detalhe que
igualmente merece atenção, em tempos de mudanças climáticas.
Fonte: DW Brasil
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