Eleições
questionadas, duas pessoas se proclamando presidente, protestos em massa pelas ruas.
Grande
parte do que vem acontecendo nos últimos dias na Venezuela relembra a crise
vivida pelo país em 2019, quando Nicolás Maduro assumiu seu segundo mandato
presidencial.
"Este
filme nós já vimos e já sabemos como termina", afirmou Maduro na
terça-feira (30/07), em discurso aos seus seguidores. Ele comparou as duas
situações e indicou que, como ocorreu da outra vez, também irá chegar à
vitória.
Mas,
além das aparentes semelhanças, analistas consultados pela BBC News Mundo — o
serviço de notícias em espanhol da BBC — consideram que os resultados das
eleições presidenciais venezuelanas do último dia 28 de julho deixaram o
governo em uma posição pior do que estava antes da votação.
E,
paradoxalmente, o governo agora corre o risco de perder definitivamente a
legitimidade internacional que tentava recuperar durante as eleições.
À
meia-noite de domingo (28/07), o presidente do Conselho Nacional Eleitoral
(CNE), Elvis Amoroso, declarou que 80% das atas haviam sido apuradas e os resultados
eram "irreversíveis", apontando Maduro como vencedor.
A
oposição denunciou que o CNE dificultou o fornecimento de cópias das atas de
votação, espécie de boletim de urna, aos seus fiscais, como determina a lei.
E
que os números de Amoroso contradizem os dados das atas em posse da oposição,
bem como os resultados das pesquisas independentes de boca de urna e das
contagens rápidas realizadas no dia das eleições.
Desde
então, cresceu a pressão, tanto interna quanto externa, para o CNE publicar os
resultados completos e detalhados das eleições, para poderem ser auditados.
Na
sexta-feira (2/8), o órgão eleitoral atualizou os resultados da eleição
presidencial, reafirmando Maduro como vencedor, mas não apresentou as atas
eleitorais.
Amoroso
explicou que a demora na atualização dos resultados foi causada por
"ataques informáticos massivos de várias partes do mundo", que
"retardaram a transmissão das atas e o processo de divulgação dos
resultados".
A
Venezuela entrou em profunda crise no início do segundo mandato de Nicolás
Maduro, em 2019.
Mas
o silêncio oficial sobre os resultados se manteve. Enquanto isso, surgiram
novas críticas ao CNE.
Uma
delas foi o relatório de observação eleitoral do Centro Carter, nos Estados
Unidos, que denunciou o benefício institucional obtido pela campanha de Maduro.
O relatório destaca que as eleições venezuelanas não foram limpas, nem
democráticas.
'Guaidó
2.0'
No
ato realizado na segunda-feira (29/7) proclamando Maduro como vencedor, o líder
venezuelano afirmou que é vítima de uma tentativa de golpe de Estado.
"Os
mesmos países que hoje questionam o processo eleitoral venezuelano, a mesma
extrema direita fascista... foram os que quiseram tentar impor ao povo da
Venezuela, acima da Constituição, um presidente espúrio, usando as instituições
do país", declarou ele. "Uma espécie de Guaidó 2.0."
Nicolás
Maduro referiu-se ao caso do opositor Juan Guaidó, que presidia a Assembleia
Nacional e se declarou presidente interino em 2019.
Guaidó
alegava que cabia a ele assumir como chefe de Estado, já que a eleição de
Maduro havia sido fraudada.
O
opositor foi reconhecido por cerca de 60 governos de todo o mundo, incluindo
muitos países latino-americanos, reunidos no chamado Grupo de Lima.
Agora,
o governo de Maduro tenta equiparar àquele grupo os países que questionaram os
resultados eleitorais apresentados pelo CNE no final do mês passado.
Em
um comunicado publicado no dia 29 de julho, o ministro das Relações Exteriores
da Venezuela, Yván Gil, ordenou que os governos da Argentina, Chile, Costa
Rica, Panamá, Peru, República Dominicana e Uruguai retirassem seu corpo
diplomático da capital venezuelana, Caracas.
Gil
acusou estes países de tentar "reeditar o Grupo de Lima" e de fingir
desconhecer os resultados das eleições.
O
Peru já anunciou que reconhece Edmundo González Urrutia como vencedor das
eleições. Os presidentes da Argentina, Javier Milei, e da Costa Rica, Rodrigo
Chaves, falaram abertamente em fraude eleitoral na Venezuela. E, em 1º de
agosto, o governo dos Estados Unidos reconheceu González Urrutia como o
vencedor da corrida presidencial venezuelana.
Mas
existem importantes diferenças entre o que ocorreu em 2019 e a situação atual.
Os
governos que não reconheceram Maduro em 2019 tomaram a decisão porque seu novo
mandato era fruto de uma eleição que consideravam fraudulenta.
Na
época, a maior parte da oposição decidiu não participar, alegando que não havia
condições para que o processo fosse livre e justo.
Mas
o governo de Maduro e aqueles que ainda o apoiam no cenário internacional
defendiam que não havia ocorrido fraude.
Simplesmente,
a oposição teve a oportunidade de participar e preferiu se abster do processo.
Nesta
ocasião, apesar das denúncias de falta de condições para realizar eleições
livres, a oposição participou e também garante ter vencido o pleito.
Eles
sustentam esta afirmação com base nas atas eleitorais que estão em seu poder.
Diferentemente
do que fez o CNE, eles publicaram os dados em um website, para que possam ser
revisados e auditados por qualquer pessoa.
Dezenas
de países e organizações de várias partes do mundo reconheceram Juan Guaidó
como presidente interino da Venezuela em 2019, incluindo os Estados Unidos e a
União Europeia.
Outra
diferença fundamental é que a autoproclamação de Guaidó foi baseada em artigos
da Constituição venezuelana que estabelecem que, no caso de ausência do chefe
de Estado, o presidente da Assembleia Nacional (AN) fica encarregado de ocupar
o Executivo de forma provisória.
Guaidó
formou uma espécie de governo interino, paralelo ao de Maduro, e tentou exercer
a presidência — na maioria das oportunidades, sem sucesso.
Já
González Urrutia foi candidato nas eleições presidenciais e declarou estar de
posse das atas de votação que demonstrariam sua vitória.
Ele
não reivindica a presidência de imediato, nem pretende formar um governo
paralelo.
González
Urrutia pede o reconhecimento de sua vitória, o que permitiria que ele
assumisse como chefe de Estado em janeiro, quando começa o novo mandato
presidencial.
Caso
a oposição realmente tenha vencido as eleições — com cerca de 70% dos votos,
como eles afirmam ter recebido —, González Urrutia contaria com o apoio
expresso e massivo dos venezuelanos para se tornar presidente.
Por
outro lado, Guaidó era um parlamentar pouco conhecido, que supostamente teria o
direito de assumir o cargo devido à sua posição na Assembleia Nacional.
O
diretor do programa para a América Latina do Centro Wilson em Washington DC,
nos Estados Unidos, Benjamin Gedan, acredita que a situação de Maduro na
Venezuela, agora, ficou mais difícil.
"Estas
eleições prejudicaram muito o perfil interno de Maduro", segundo Gedan,
"porque o que temos agora é uma população totalmente mobilizada,
comprometida com um processo eleitoral que não teve continuidade e com
esperanças não cumpridas de realizar a transição política."
"É
uma população decepcionada, mas também furiosa e disposta a se manifestar ou
procurar outros caminhos para realizar as mudanças políticas que ela
exige", declarou o especialista à BBC News Mundo.
Gedan
indicou ainda que muitos dos militantes tradicionais do chavismo não compareceram
para votar porque, embora não estejam a favor da oposição, querem uma mudança
política no país.
O
mal-estar dos que votaram para fazer essa mudança estaria sendo refletido nas
manifestações que ocorrem na Venezuela desde o dia seguinte às eleições, como
destaca o ex-presidente do CNE Andrés Caleca, que hoje faz parte da oposição
venezuelana.
"A
grande diferença é que estes protestos não se destinam a defender um político
(...). As pessoas estão protestando porque estão roubando seus votos",
declarou Caleca, em entrevista à TV online venezuelana VPI. Ele acrescentou que
os eleitores, os fiscais do governo e os militares que protegeram os locais de
votação em todo o país sabem o que aconteceu ali.
E,
segundo Caleca, eles estão cientes da vitória de González Urrutia, o que
debilitaria a situação interna de Nicolás Maduro.
De
sanções à reinserção internacional
Em
consequência da reeleição questionada em 2018, o governo de Maduro enfrentou
diversas sanções internacionais impostas principalmente pelos Estados Unidos e
pela União Europeia.
O
governo americano adotou uma série de medidas que restringiram a capacidade da
PDVSA, a empresa estatal de petróleo da Venezuela, de explorar e comercializar
o petróleo venezuelano.
Essas
sanções foram implementadas em um período em que a economia venezuelana já
estava em profunda recessão, com o país em moratória de sua dívida externa e
enfrentando uma crise hiperinflacionária.
Como
resultado, o governo venezuelano ficou isolado no cenário internacional,
contando apenas com o apoio de seus aliados da ALBA (Aliança Bolivariana para
os Povos da América), como Cuba, Nicarágua, Bolívia e várias ilhas do Caribe,
além de outros aliados internacionais, como Rússia, China, Irã e Turquia.
A
situação começou a mudar a partir de 2021, quando Maduro foi convidado pelo
presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, para uma reunião da
Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) no México.
Naquele
mesmo ano, a chegada de Joe Biden à Casa Branca trouxe um novo diálogo entre
Washington e Caracas, permitindo a realização de alguns acordos pontuais.
A
saída de líderes de direita do poder em países como Bolívia, Brasil e Colômbia
também ajudou Maduro a recuperar gradualmente seu reconhecimento internacional,
avançando em direção a uma certa normalização de seu status no cenário mundial.
O
presidente Joe Biden flexibilizou as sanções dos Estados Unidos sobre o
petróleo venezuelano.
Como
parte desse processo, os EUA permitiram que a empresa americana Chevron
expandisse suas operações na Venezuela.
Em
troca, o governo de Maduro deveria retomar as negociações com a oposição
venezuelana no México.
Esse
movimento iniciou o processo que culminou nas eleições de 28 de julho.
Se
o pleito fosse considerado suficientemente transparente, poderia abrir caminho
para uma nova legitimação de Maduro, possibilitando a eliminação das sanções
internacionais contra seu governo.
No
entanto, até agora, isso não parece provável.
'Oportunidade
perdida'
O
governo de Maduro considera as eleições encerradas e nega qualquer má conduta
durante a apuração.
No
entanto, os resultados das eleições presidenciais de 28 de julho, anunciados
pelo CNE, foram recebidos com grande ceticismo pela comunidade internacional.
Países
como Nicarágua, Rússia, Irã, Bolívia, Cuba, China e Honduras reconheceram a
vitória de Maduro como legítima e o parabenizaram.
Em
contraste, o presidente do Chile, Gabriel Boric, declarou que os resultados são
"difíceis de acreditar", enquanto o presidente uruguaio, Luis Lacalle
Pou, afirmou que o pleito "esteve claramente viciado".
O
governo brasileiro adotou uma postura mais cautelosa, mas enfatizou que a
publicação das atas eleitorais é um "passo indispensável para a
transparência, credibilidade e legitimidade do resultado". O presidente
Lula, tradicional aliado de Maduro, também defendeu a apresentação das atas
para resolver a disputa.
Se
as dúvidas sobre a transparência das eleições não forem esclarecidas, é
improvável que Maduro consiga a legitimação desejada. Sem isso, será difícil
para ele recuperar economicamente o país no cenário internacional.
Economistas
apontam que, para alcançar a recuperação, não só é necessário o levantamento
das sanções, mas também a renegociação da dívida externa, a atração de
investimentos substanciais e o apoio financeiro de organismos multilaterais,
como o FMI e o Banco Mundial.
Os
resultados das eleições presidenciais são questionados tanto dentro quanto fora
da Venezuela.
Para
Benjamin Gedan, o interesse pelo petróleo venezuelano é significativo devido à
grande capacidade de extração do país, mas ele duvida que esses investimentos
se concretizem.
"Não
acho que seja viável devido à grande incerteza política", afirma Gedan.
"Há uma grande possibilidade de retorno das sanções, e também não há
perspectivas de mudanças profundas no marco legal."
Ele
acrescenta: "As petroleiras desejam desempenhar um papel mais ativo no
setor energético, mas, no momento, o marco legal da Venezuela é muito
socialista."
Gedan
observa que todos os especialistas em energia da Venezuela concordam que o país
não tem futuro sem uma transição política.
"Independentemente
das sanções dos Estados Unidos, o que a Venezuela precisa é de uma renovação
total dos governantes, um novo marco regulatório para o setor, novas leis e
enormes investimentos para reconstruir um setor que está quase totalmente
destruído."
Benedicte
Bull, professora de ciências políticas da Universidade de Oslo, destaca que
essa crise de legitimidade não deve impactar a aliança de Maduro com a China e
a Rússia.
No
entanto, ela alerta que a situação internacional mudou desde 2019.
"Atualmente,
a Rússia não tem a capacidade econômica para oferecer a Maduro o mesmo apoio
que fornecia em 2019 para evitar sanções", explica a professora.
"Com
a China, há uma relação, mas Maduro sabe que a China não está disposta a
oferecer mais financiamento."
A
China parabenizou Nicolás Maduro pela vitória nas eleições de 28 de julho,
apesar das contestações sobre o resultado.
Em
relação à América Latina, Benjamin Gedan alerta que a crise de legitimidade
gerada pelas eleições deste ano interrompeu o processo de
"normalização" das relações entre a Venezuela e os países da região.
"Será
muito difícil para a maioria dos governantes da América Latina restabelecer
relações com este governo", afirma ele, "pois ainda existe um
compromisso regional com a democracia, e é evidente que a Venezuela não a
possui."
Gedan
explica que isso não necessariamente resultará em sanções regionais, o que não
é comum, nem no fechamento de embaixadas.
"O
que significa é que a Venezuela não terá aliados na região que justifiquem seu
comportamento, como teve por muitos anos", esclarece.
Ele
conclui: "Para pessoas como Lula, o presidente colombiano Gustavo Petro ou
o ex-mandatário argentino Alberto Fernández, será muito difícil defender o
regime ou justificar as violações dos Direitos Humanos após essas
eleições."
BBC News Brasil
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