Foro por prerrogativa de função: garantia de impunidade ou de punição?

 



(*) Raphael Diniz Franco

A previsão constitucional — com fundamento nos artigos 53 e 102 da Constituição — que assegura o processamento e julgamento de infrações penais comuns atribuídas aos ocupantes de determinados cargos públicos perante os tribunais de segunda instância ou superiores vem gerando acalorados debates na sociedade, que se refletem em recentes alterações do entendimento sobre o seu alcance pela Supremo Tribunal Federal, fomentando-se, por outro lado, proposições legislativas do Congresso sobre o tema.

Tal assunto voltou aos holofotes da sociedade em razão do julgamento [1] em andamento no STF, em que são debatidas as balizas do instituto, não encerrado em razão do pedido de vista do ministro Nunes Marques. No entanto, já há maioria de seis julgadores para estender a manutenção da prerrogativa de foro nos casos de delitos cometidos no cargo e em razão dele, mesmo após a saída da função pública, vencido, por ora, o ministro André Mendonça, que entendeu pelo fim da prerrogativa assim que o agente público deixar o cargo.

O instituto em questão busca “preservar o interesse da sociedade no sentido de que esses agentes possam exercer livremente suas funções, protegidos contra pressões indevidas, com ampla autonomia”. Desse modo, retira-se do juízo singular a competência para processar e julgar as infrações penais atribuídas a tais agentes, presumindo-se que o magistrado monocrático seria mais suscetível a pressões externas a fim de favorecer ou prejudicar determinado réu.

Trata-se de proteção da função, e não da pessoa, de modo que parte da doutrina critica a denominação do instituto como um privilégio, comumente chamado de “foro privilegiado”.

Em suma, muitos dos argumentos neste debate referem-se à impressão de uma maior leniência e morosidade dos tribunais superiores com as autoridades sub judice, e, em sentido oposto, outros reclamam do rigor punitivista e da contaminação política dos julgamentos em tais tribunais.

Acresça-se, para devida contextualização da discussão, que parte da doutrina sustenta a maior relevância dessa proteção constitucional no cenário atual, de modo que “a garantia constitucional da prerrogativa de foro passa a ser tanto mais importante se se considera que vivemos hoje numa sociedade extremamente complexa e pluralista, na qual a possibilidade de contestação às escolhas públicas é amplíssima” [2].

Limitação recursal

Por outro prisma, doutrinadores também advertem para o prejuízo da prerrogativa de foro ao direito ao duplo grau de jurisdição, diante da impossibilidade de se manejar recursos de mérito contra decisões colegiados dos tribunais, em cenário bem ilustrado por Aury Lopes Junior [3]:

“Assim, um deputado estadual, julgado originariamente pelo Tribunal de Justiça, somente terá recurso especial e extraordinário dessa decisão, e, em ambos, está vedado o reexame da ‘prova’ do processo, limitando-se a discutir eventual violação de norma federal ou constitucional […]. Imagine-se então quem é julgado originariamente pelo Supremo Tribunal Federal; o duplo grau de jurisdição é inexistente”. Neste complexo debate, é curioso observar a recente alteração de percepção da sociedade sobre o mesmo tema.

AP 937

Rememoremos a discussão ocorrida quando do ápice da operação “lava jato”, que afetou diversos agentes públicos que ostentavam o foro por prerrogativa de função, quando havia um reclamo da sociedade e das autoridades persecutórias sobre a demora e leniência das cortes superiores nas investigações e ações penais sob sua jurisdição, ao contrário do que ocorria nos julgamentos dos réus em primeira instância.

Neste sentido, é emblemática a declaração do procurador da República então coordenador da força-tarefa da operação “lava jato” divulgada neste portal em 2016, quando afirmou que o Supremo “não é um órgão que saiba julgar processos penais”, e que tal instituto seria um “facilitador da corrupção”, gerando indesejada “impunidade”, em que “a lei não vale exatamente para todo mundo”.

Diante de tal contexto de críticas, o STF, ao apreciar questão de ordem suscitada pelo ministro Roberto Barroso na Ação Penal 937 [4], em 2018, acabou restringindo o alcance da prerrogativa em questão, limitando a sua incidência aos casos em que (1) os delitos tivessem sido praticados no exercício do mandato atual do agente público e (2) que tivessem relação direta com o exercício do cargo ocupado.

Vê-se, assim, que a Suprema Corte restringiu seu entendimento quanto à aplicação do foro por prerrogativa, com a finalidade de que “sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções — e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade”.

No julgamento acima referido, reconheceu-se que a interpretação então vigente — no sentido de que todos os delitos imputados aos agentes públicos deveriam atrair a competência do tribunal relacionado ao cargo, independentemente de quando foram praticados ou da sua relação com o exercício do mandato — “não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas”, destacando-se que “a experiência e estatísticas revelam a manifesta disfuncionalidade do sistema, causando indignação à sociedade e trazendo desprestígio para o Supremo”.

Nos dizeres do ministro relator, o sistema então vigente até 2018 era “muito ruim e funciona muito mal. A meu ver, ele reclama uma modificação legislativa, que já começou a ser feita pelo Congresso, ao que se noticia. Penso que isso seja em boa hora”.

Reviravolta e contradição

Pois bem.

Passados seis anos da mudança jurisprudencial mencionada, há uma aparente reviravolta não só na jurisprudência do STF sobre o tema, mas também no entendimento dos próprios congressistas quanto ao benefício (ou não) de ser processado e julgado perante um tribunal superior.

Neste sentido, é sintomática a afetação ao Plenário da Corte, por decisão do ministro Gilmar Mendes, de Habeas Corpus [5] em que se discute a competência do Supremo para julgar um senador da República por fatos pretensamente praticados quando de seu mandato de deputado federal, para que o órgão máximo da corte revisite a discussão sobre o alcance do foro por prerrogativa de função.

Ao ver do decano da corte, “a prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício”, de modo que votou pela extensão da aplicação do instituto em comento, sendo seguido, até o momento, por outros quatro ministros, até a interrupção do julgamento pelo pedido de vista do ministro Roberto Barroso.

No novo entendimento proposto, o principal critério para definição da competência seria o cargo efetivamente exercido pelo agente público quando do cometimento da infração penal, independentemente de o mandato ter se encerrado ou não quando se iniciar o processamento ou julgamento do feito, desde que a acusação tenha relação com o exercício do mandato.

Sob a ótica do ministro Gilmar Mendes, não se trata de alteração do entendimento fixado em 2018, e sim de complementação, visando estabilizar “o foro para julgamentos de crimes praticados no exercício do cargo e em razão dele, ao mesmo tempo em que depura a instabilidade do sistema e inibe deslocamentos que produzem atrasos, ineficiência e, no limite, prescrição”.

Curiosamente, essa alteração (ou complementação) sobre o quanto decidido no julgamento realizado em 2018 provocou uma relevante reação do Congresso, capitaneada justamente por parlamentares que ostentam o foro por prerrogativa de função perante o Supremo Tribunal Federal, que teriam passado a pressionar o presidente da Câmara dos Deputados a votar uma Proposta de Emenda à Constituição para praticamente extinguir o foro por prerrogativa, que passaria a incidir apenas para o presidente e vice-presidente da República, e para os chefes dos Poderes Legislativo e do Judiciário.

Percebe-se, assim, uma aparente contradição entre o fundamento invocado para se restringir a aplicação do instituto em 2018 e o atual movimento no Congresso, já que os supostos beneficiados pela morosidade e impunidade à época pleiteiam, agora, o fim da prerrogativa de serem processados e julgados perante a corte.

Afinal, o que teria mudado para os representantes da sociedade em um curto lapso temporal? O entendimento de que o STF seria leniente e morosa ao julgar os agentes públicos que ostentam a prerrogativa por foro se transformou na percepção de que a corte é célere e rigorosa ao julgá-los em 1ª e única instância?

[1]  STF, HC 232.627 e Inq 4.787.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz. “Comentários ao art. 102, inciso I, alíneas b a r da Constituição Federal”. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (orgs.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013.

[3] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

[4] STF, Plenário, Ação Penal 937/RJ, Rel. Roberto Barroso, 3/5/2018.

[5] STF, Plenário Virtual, HC 232.627/DF, Rel. Gilmar Mendes, julgamento em andamento.

(*) é advogado criminalista, mestre em Direito, LL.M em compliance e Direito e sócio do Nelio Machado Advogados.


Fonte: Artigo publicado, originalmente, na Revista eletrônica Conjur (https://www.conjur.com.br/2024-out-13/foro-por-prerrogativa-de-funcao-garantia-de-impunidade-ou-de-punicao/ )


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