Humanos
não são muito bons com quantidades exatas. Uma experiência clássica de cognição
numérica consiste em mostrar pontos em uma tela para uma pessoa e perguntar
quantos ela vê, sem contá-los. Se houver um, dois ou três pontos, o
participante responde de bate-pronto. A partir de quatro, a resposta já demora
um pouco. E com números muito altos, como 40 ou 50 pontos, tudo que se pode
fazer é estimar. Mesmo assim, os humanos desenvolveram uma matemática
extremamente sofisticada. Tudo graças à nossa capacidade de usar símbolos para
representar quantidades: 1, 2, 3…
Um
problema dessa tática é que nossa memória não dá conta de lembrar de um símbolo
diferente para cada quantidade (se decorar a tabuada já é difícil, imagine
lembrar de um símbolo que represente especificamente a quantidade 278144). A
solução é subdividir as quantidades grandes em quantidades menores.
Geralmente
agrupamos quantidades de dez em dez. É uma imposição do nosso sistema numérico,
que tem dez algarismos: 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9. Para representar
quantidades maiores que nove, começamos a repeti-los: 10, 11, 12… Assim,
retratamos qualquer valor como pacotinhos de dez. O número 40, por exemplo,
consiste em quatro dezenas. Já o 560 são cinco dezenas de dezenas (uma centena)
mais seis dezenas. Por isso, esse sistema é chamado de decimal, ou de base 10.
Poderíamos
agrupar os números em pacotes de seis ou de oito. Mas escolhemos o dez por um
acaso biológico: com exceção dos 0,01% polidáctilos que existem no mundo,
nascemos com dez dedos nas mãos. Isso facilita a visualização de quantidades,
principalmente quando estamos aprendendo a contar. Não é à toa que as palavras
“dígito” e “digital” são tão parecidas: ambas derivam do latim digitus, que “dedos”.
Se
fôssemos personagens de desenho animado, com apenas quatro dedos em cada mão,
provavelmente contaríamos de oito em oito. Aprenderíamos na escola os
algarismos 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7. Como não haveria um símbolo específico para
o número oito, ele seria representado por 10. A quantidade nove seria
representada pelo símbolo 11 – e a quantidade dez, pelo símbolo 12.
Ficariam
“faltando” números na matemática? Não. As quantidades são algo que não muda,
não importa em qual canto do Universo você esteja. Os numerais são só a maneira
que escolhemos para falar e escrever sobre as quantidades – e isso, sim, pode
mudar. Não importa se eu chamo os números “um”, “dois” e “três” de “Huguinho”,
“Zezinho” e “Luisinho”. O símbolo muda, a quantidade não.
Ao
longo da História, civilizações diferentes usaram outras bases numéricas. Os
maias e astecas contavam de 20 em 20, provavelmente usando os dedos das mãos e
dos pés. Já os babilônios e sumérios utilizavam um sistema de base 60, ou
sexagesimal. Herdamos deles a contagem do tempo (60 minutos e 60 segundos) e a
trigonometria (há 360 graus em um círculo, que é seis vezes 60).
Matematicamente,
não há nada de especial no sistema de base 10 que justifique seu estrelato.
Alguns matemáticos, de fato, argumentam que estamos vivendo uma “tirania do dez”.
A Dozenal Society of of America (ou Sociedade Dozenal da América) reúne pessoas
que defendem uma mudança no nosso sistema numérico. Para eles, o mais lógico
seria utilizar a base 12, também chamada de duodecimal, no dia .
O
fato de termos só cinco dedos em cada mão não seria um problema. Em vez de
representar cada dedo como uma unidade, poderíamos usar o dedão para contar os
gominhos – vulgo falanges – que existem nos quatro outros dedos. Isso totaliza 12 unidades
em apenas uma mão, e é provavelmente um dos motivos pelos quais os babilônios
usavam base 60, que é um múltiplo de 12.
A
Sociedade Dozenal argumenta que a base duodecimal facilitaria o aprendizado de
matemática nas escolas, tornaria as tabuadas mais fáceis de decorar e
eliminaria boa parte das dízimas periódicas (o terror dos vestibulandos). Mas,
para isso, precisaríamos reeducar nossas mentes e aprender a contar de 12 em
12.
Contando
ovos
Imagine
que você trabalha em um supermercado e precisa conferir o estoque de ovos. Como
você sabe, eles são vendidos às dúzias. Seu fornecedor entrega engradados de madeira
que contêm 12 caixas de ovos cada. No porão do supermercado, esses engradados
ficam organizados em pilhas de 12 antes de irem para as prateleiras. Caso o
cliente encontre algum ovo quebrado dentro da caixa à venda, ele pode trocá-lo
por outro ovo. Por isso, o mercado mantém uma caixa aberta com ovos avulsos
para a reposição.
Dada
a maneira como o estoque está organizado, você acha que não faz sentido contar
o total de ovos individualmente no porão. Então, você repassa ao seu supervisor
a seguinte informação: “Temos 5 3 engradados, 7 caixas e 8 ovos avulsos no
estoque”. Para agilizar a comunicação, você passa a escrever só as iniciais de
cada conjunto: 5p 3e 7c 8o.
Quando
o chefe já se acostumou com a notação, ele nem precisa mais das letras: você
escreve apenas 5378. Ele deduz o que cada número significa de acordo com sua
posição. Caso um dos conjuntos tenha 10 ou 11 itens (por exemplo, um engradado
com 11 caixas), você escreve as letras D, de “dez” e O, de “onze” no lugar.
Um
funcionário desavisado tomaria um susto quando lesse o papel. No caso acima,
ele diria que não há 5.378 ovos no porão, e sim 9.164. Nenhum dos dois está
errado: enquanto ele está pensando em grupos de dez, você optou por representar
o número de ovos em grupos de doze. Um está em base decimal, e o outro em base
duodecimal.
Apesar
de parecerem números diferentes, a quantidade de ovos no porão continua a
mesma, independentemente da base numérica escolhida para representá-la. Para
evitar inconsistências na planilha do mercado, os funcionários precisam, é
claro, combinar qual base eles irão usar para a contagem de ovos.
Na
vida real, não precisamos combinar algo assim, porque o sistema decimal é o
único socialmente aceito. Imagine perguntar as horas para um estranho na rua e
ele responder “14h”. “Em qual base?” “Base “Base cinco!” O numeral 14, então,
se refere a uma quina mais quatro unidades. Você concluiria que são 9h da
manhã.
Mas
há casos em que é preciso combinar. O computador, por exemplo, só entende base
binária, em que existem apenas os numerais 0 e 1. Esse sistema numérico
representa o funcionamento dos circuitos eletrônicos básicos, que só podem
estar de duas formas distintas: ligado ou desligado. Zero ou um.
Nesse
sistema, que tem apenas dois símbolos possíveis, a representação dos números
cresce muito rápido. O número um é 1, o dois é 10, o três é 11, e o quatro já é
100. Para dizer que estamos no ano 2024, escreveríamos 11111101000. Fácil para
um computador. Mas é quase impossível para um humano identificar rapidamente
qual quantidade essa sequência representa.
É
por isso que os computadores também usam o sistema hexadecimal (ou seja, de
base 16) para expressar os numerais binários de forma compacta. O número 111
1110 1000, por exemplo, pode ser dividido em três grupos de quatro dígitos. A
parte 1000 é oito. O 1110 é 14, que no sistema hexadecimal é representado pela
letra E. Já o 0111 significa 7. Assim, transformamos o monstrão de onze dígitos
em 7E8. Parece estranho – mas, para os programadores, esse é um jeito
conveniente de conversar com o computador.
“A
questão é a mentalidade humana, nós temos uma limitação. Se olhamos para uma
série de apenas dois dígitos, todos eles parecem iguais. Eu não sei o que eles
querem dizer”, diz Michael de Vlieger, ex-presidente e atual secretário da
Dozenal Society of America (DSA). “Um sistema de base 2 é muito baixo para o
dia a dia. E a base 16 é muito alta, pois eu teria que ensinar 16 numerais
diferentes para as criancinhas.
Michael
é uma espécie de subcelebridade entre os nerds de matemática. Ele criou
símbolos e nomes para mais de 450 números, que podem ser usados em bases
numéricas enormes. Na prática, esses numerais esses numerais servem mais para
estudo e diversão. No seu dia a dia como arquiteto, Mike escolhe usar a base
duodecimal.
Há
um motivo claro para isso: enquanto o número 10 só é divisível por 2 e 5, o 12
pode ser dividido por 2, 3, 4 e 6. Um bolo de 12 fatias pode ser comido
igualmente em grupos de 2, 3, 4 e 6 pessoas. Já o bolo de 10 fatias só funciona
em festas de 2 ou 5 pessoas. Senão, dá briga.
A
base 12 tem o dobro de possibilidades de divisão que a base 10. Isso é tão útil
que os mercados já funcionam vendendo itens em dúzias (bananas, pães, ovos…).
No sistema imperial de medidas, usado nos Estados Unidos, um pé equivale a 12
polegadas. E nenhuma pizzaria do mundo corta o disco de massa em dez pedaços:
são sempre 8 ou 12.
Esse
é o tipo de conscientização que a DSA quer promover. A sociedade foi criada na
década de 1940 pelo escritor F. Emerson Andrews com o intuito de divulgar as
vantagens da base 12 – e, talvez, até mudar de vez a maneira como o mundo
conta. Em 1934, ele publicou um artigo em que aponta o uso da base decimal como
uma “miopia indesculpável”.
A
DSA publica regularmente o Boletim Duodecimal, uma espécie de revista que traz
debates sobre o uso de bases numéricas alternativas. Lá, todos os números são
expressos em base decimal e duodecimal. O ano 2024, por exemplo, é 1208. Para
não confundir os leitores, os autores colocam letrinhas ao lado dos números que
indicam sua base numérica. O número 2024D (decimal) é o mesmo que 1208Z
(“dozenal”).
Em
vez de utilizar os símbolos D e O, como ficou combinado entre os funcionários
do supermercado hipotético, a DSA propõe que os números 10 e 11 sejam
representados pelos símbolos e . Eles
contam da seguinte forma: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, ,, 10. Esses numerais se
chamam “dek” e “el”.
Essa
representação numérica foi criada no século 19 por um dos primeiros defensores
da base duodecimal: o educador e inventor Isaac Pitman. Ele queria otimizar
tudo que havia ao seu redor. Além de defender uma simplificação da língua
inglesa, Pitman ficou famoso por criar um método de taquigrafia – basicamente
um sistema de escrita abreviado, que permite condensar mais informações em menos
espaço. Seu lema era “tempo salvo é vida ganha”. Ele daria um ótimo
programador.
O
sistema numérico de base 12 fez parte da sua agenda pela otimização do mundo.
Graças a seu alto número de divisores, ela tornaria contas de divisão e
multiplicação mais intuitivas – e, possivelmente, as aulas de matemática menos
traumáticas.
Uma
nova aritmética
Suponha
que João está resolvendo um exercício de física e quer encontrar o local exato
em que um carro atinge um terço da travessia de uma rua. 1/3 é igual a 0,333… do
desenho da rua. Determinar essa distância com uma régua escolar é
impossível.
Só
que João usa o sistema duodecimal. O dez dele equivale ao nosso doze. Nessa
representação, 10Z dividido por três é igual a quatro. Logo, um terço equivale
a 0,4 do comprimento total do desenho. 40%, em um mundo em que o total é 120%.
A
dízima periódica 0,333… e a fração 0,4 representam o mesmo ponto no papel. São
o mesmo número, só que em bases numéricas diferentes. Mas a primeira
representação é mais assustadora que a segunda.
Em
um mundo que utiliza base duodecimal, a metade de 10Z é 6. Lembre que estamos
apenas mudando os numerais, e não os números. A quantidade de ovos dentro de
uma caixa continua a mesma, a diferença é que agora chamamos o 10 de , o 11 de
, e o 12 de 10. Dividindo os ovos em duas cestas iguais, ficamos com seis deles
em cada uma.
Só
parece complicado porque fomos “alfabetizados” em base decimal. Mas para quem
está aprendendo números pela primeira vez, a base 12 seria uma mão na roda. Um
quarto vira 0,3 em vez de 0,25. E um sexto
é 0,2 em vez do monstrinho 0,166…
A
tabuada também teria algumas comodidades. Os múltiplos de três sempre
terminariam em 3, 6, 9 e 0, nesta sequência. Os de quatro, em 4, 8 e 0. Os
múltiplos de cinco, por outro lado, não teriam padrão algum. Os “dozenalistas”
argumentam que raramente iríamos querer multiplicar ou dividir por esse valor
se utilizássemos a base 12 diariamente.
Michael
de Vlieger garante que é como aprender uma nova língua: você começa convertendo
os números de base 10 para base 12, e depois de algum tempo já está pensando em
base duodecimal. Por outro lado, ele sabe que mudar todo o nosso sistema
numérico hoje seria impossível. E, a curto prazo, traria mais confusão do que
facilidades.
Hoje,
a DSA não tem ambições reais de converter o mundo para a base 12: seu objetivo
é apresentar outras maneiras de pensar a matemática do dia a dia. “Estamos
tentando abrir a mente das pessoas para esse nível de liberdade de pensamento”,
diz Mike. “Algumas pessoas podem se interessar em pensar diferente, e
estaríamos felizes em recebê-las.”
Entender
o mundo em base 12, afinal, é como vê-lo através de outras lentes. E, se elas
forem mais nítidas que as lentes que conhecemos, tanto melhor – não há nada
como o alívio de pôr um óculos com o grau certo.
Fontes:
livro History of binary and other nondecimal numeration; livro Alex no país dos
números; artigos da Dozenal Society of America.
Agradecimentos: Zaqueu Vieira Oliveira, pesquisador em História da Matemática na Unesp; John Volan, editor do Boletim Duodecimal.
Artigo publicado, originalmente pela Revista Superinteressante
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