Havíamos mudado para a casa nova. A saleta onde há 40 anos funciona o que denomino minha pequena “cápsula de trabalho” ainda estava sendo mobiliada e, por isso, minha escrivaninha ficava no quarto, abaixo da TV. Assim estávamos certa ocasião – eu escrevendo e minha mulher assistindo à TV – quando uma voz se ergue sobre o som normal do aparelho. A voz exclamava: “Não podem fazer isso comigo! Eu sou uma pessoa humana! Eu sou uma pessoa humana”. Aquelas palavras me fizeram olhar imediatamente a tela onde um miserável era submetido a visível constrangimento. Comentei com minha mulher: “Esse infeliz está usando em sua defesa o argumento perfeito, mais forte e sábio possível. O principal motivo para que não ajam assim contra ele está impresso em sua natureza. Ele é uma pessoa humana. E ponto. Nada mais é necessário ser dito”.
Infelizmente, costumamos interagir de outro modo. Alinhamos prerrogativas com base nas nossas credenciais. “Sou o Dr. Fulano, sou isto, sou aquilo; sou parente do Beltrano, amigo do Cicrano” e, na maior parte dos casos, funciona, embora tudo isso seja infinitamente menos relevante do que a dignidade inerente à nossa natureza.
Noventa e nove por cento do genoma humano é semelhante ao dos chimpanzés. Esses benditos um por cento fazem enorme diferença! E criam complexidades que se revelam em tensões existenciais decorrentes de nossa natureza. Somos individuais. Absolutamente individuais, únicos e insubstituíveis. Nosso DNA diz quem somos e conta nossa origem na cadeia contínua da vida. Mas temos existência social. Somos imperfeitos, mas aperfeiçoáveis e é bom termos consciência disso para não causarmos infelicidade aos outros. Somos materiais, mas somos, também, espirituais. Somos racionais, mas também instintivos.
Observe o leitor que nossa condição de “animais políticos” nas palavras de Aristóteles, decorre dos dois primeiros pares de atributos acima. Se fôssemos apenas individuais, a política seria impossível; se apenas sociais, ela seria desnecessária. Se fôssemos apenas imperfeitos, ela seria impossível; se apenas perfeitos, seria desnecessária. É perante esse par de atributos que a dimensão moral da política e de seus agentes se torna tão significativa ao bem comum. Se aqueles que exercendo o poder em nome do Estado – tendo em mãos o monopólio da força – ignorarem a dignidade da pessoa humana e não contiverem nem forem contidos no uso dessa força, a tirania se haverá de instalar.
De onde vem, então, a dignidade do ser humano? É só pelo DNA que nos distinguimos dos chimpanzés? Muitos creem que a essência esteja na inteligência, mas isso é um erro porque somos inteligentes com coeficientes diferentes e não parece sensato criarmos uma escala de dignidade referida ao QI de cada um. Do mesmo modo, não cabe fazermos algo assim com qualquer outro atributo humano, beleza, força, idade, riqueza material, cultura e assim por diante.
Das respostas já dadas pela humanidade à pergunta do parágrafo anterior, se eleva, sobre todas as demais, a resposta da tradição judaico-cristã: somos criados à imagem e semelhança de Deus, que, no ensino cristão, se fez homem, assumiu essa mesma natureza e foi ao extremo sacrifício por amor à criatura única e insubstituível que somos.
Eis porque toda tirania é abjeta e deve ser rejeitada.
(*) Arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras. Escreve, semanalmente, artigos para vários jornais do Rio Grande do Sul, entre eles Zero Hora, além de escrever o seu próprio blog e em outros websites de expressão nacional, a exemplo do Mídia Sem Máscara, Diário do Poder, Tribuna da Internet. Sua coluna é reproduzida por mais de uma centena de jornais.
Fonte: O Boletim
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